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Friday, May 31, 2013

ALGUMAS GRANDES MUDANÇAS

Alagoinhas, Bahia (Foto: Flickr by Fabio Chusyd)
Em uma de minhas viagens de férias, eu estava, domingo à tarde, num parque de diversões na cidade de Alagoinhas, conversando com meu primo Romildo e sua esposa Neuza. Em algum momento dessa conversa, olhei para frente e juro que fiquei em transe ao ver um moço idêntico ao ator americano Charlton Heston, o herói do filme Ben-Hur. Ele não parava de olhar para mim até que se aproximou e pediu permissão ao casal para conversar comigo. Ficamos algumas horas juntos comendo pipocas quando, de repente, ele falou:

– Quer namorar comigo? Já estou apaixonado por você!

É claro que nem preciso dizer que ele foi correspondido de imediato! Um ano depois, pediu-me em casamento. Meus pais aceitaram, pois, àquela altura, ele já havia conquistado a amizade de toda a família. 

Um tempo depois, estávamos reunidos na sala quando chegou um casal, eles se apresentaram como irmão e cunhada de meu noivo, dando a terrível notícia de que Edmo era casado e tinha três filhos. O mundo desabou em minha cabeça porque eu o amava muito. Ele, entretanto, apesar de casado, não vivia com a mulher, estava em trâmite de desquite e também não queria se separar de mim. Naquela época, final da década de 60, ser desquitado era um escândalo. Em função da educação severa que recebi, acabei tudo com ele. Contudo, ele não aceitou e continuou a me seguir no trajeto do meu trabalho, da escola e de todos os lugares aonde eu ia. Acredito que Edmo demorou a recuperar-se. Acho também que eu já não o amava o suficiente para aceitar aquela situação. Só não consegui entender direito porque os pais dele e toda a sua família nunca me disseram nada, até que um de seus irmãos, que vivia em Mata de São João, resolveu dar o tiro de misericórdia em nossa relação, contando-me tudo.

Já sozinha, cursando o segundo grau, decidi continuar os estudos à noite e procurar um trabalho. Um dia, quando trabalhava num posto de saúde como recepcionista, uma colega pediu-me para atender um rapaz que havia chegado com o joelho machucado. Encaminhei-o para a sala de primeiros socorros onde foi atendido. A partir de então, nós não paramos mais de nos encontrarmos. Porém, esse relacionamento começou a preocupar meu pai:

– Filha, eu não acho uma boa ideia você continuar com esse namoro, estou até sabendo que vocês querem se casar. 

– Sim, pai, vamos nos casar dentro de dois meses. 

– Filha, não faça essa loucura! Esse moço é do Sul, e não sabemos nada a seu respeito, sua família, descendência... Só sabemos que ele está há pouco tempo em Salvador e trabalha numa fábrica de carrocerias de ônibus. 

– Eu sei, pai. Mesmo assim, vocês querendo ou não, esse casamento será realizado. 

– Está bem, abençoaremos essa união, mas acredito que em pouco tempo você estará de volta para casa. 

Foto: Flickr by Rachell Kolodsiejski
Foto: Flickr by Mauro Boimel

Três meses depois, foi celebrado nosso casamento com uma grande festa. A decoração foi belíssima, na igreja de Nossa Senhora Auxiliadora, no Bairro de Nazaré. No mesmo dia, a filha de um deputado baiano também estava se casando, e dividimos as despesas da decoração, da música e de outros itens. Minha irmã e seu marido, Osvaldo, foram os meus padrinhos dentre outras pessoas da família. Depois da festa, tomamos um ônibus-leito para Vitória da Conquista, uma cidade a setecentos quilômetros de Salvador, no sudoeste da Bahia, onde fomos morar. Nessa época, meu marido já havia trocado de emprego, trabalhava como representante de um laboratório.

Foto: Flickr by Jhoon César A.K.A. YoungJ
Foto: Flickr by Gil Novais

Morávamos em um sobrado alugado. O andar de baixo era a escolinha da filha do proprietário do prédio. No andar de cima, fizemos nosso lar. Essa felicidade durou apenas quatro meses, pois meu marido perdeu o emprego, e tivemos de deixar todos os móveis e eletrodomésticos que tínhamos, como pagamento do aluguel, sendo a maioria deles presentes da família. Além disso, eu sofri um aborto natural, e perdi o nosso primeiro filho.







Thursday, May 30, 2013

Conde, o Início da Trilha (parte 5)


Todos os anos, o ginásio em que estudava fazia um desfile muito bonito para comemorar o Dia da Primavera. Nesse ano, fui convidada pelo diretor da escola para participar do Concurso de Miss. Concorri com mais duas colegas e ganhei o concurso. Na noite da coroação, vestia um vestido longo de brocado de seda e de cor prata, usava sapatos feitos com o mesmo tecido do vestido. No dia seguinte, eu e as duas princesas saímos às ruas num carro alegórico, abrindo o desfile com os outros alunos. Eles também usavam roupas típicas do desfile representando o nosso folclore, como baianas, índios e pescadores. Eu tinha dezessete anos.

Desfile da Primavera (Na foto: Eu, Márcia Castro e Eulália)

Foi quando eu comecei a namorar um moço que era sócio de uma torrefação de café na cidade de Alagoinhas. Ele tinha casa de veraneio no Conde e era bem mais velho que eu. Pediu permissão para meus pais e foi aceito de imediato porque eles o consideravam um bom partido. Uma vez, levou-me para passar uma semana em sua casa em Alagoinhas e, lógico, mamãe foi junto. Ele morava sozinho com a empregada, que cuidava dele como se fosse seu filho. Tudo estava indo muito bem, eu estava feliz porque gostava muito dele, e ele já pensava até em me pedir em casamento. Não o via frequentemente porque ele morava e trabalhava em outra cidade. Em um dos finais de semana em que veio me visitar, eu o senti um pouco distante e perguntei-lhe o que estava acontecendo. Ele me respondeu:

– Zeza – nome carinhoso pelo qual ele me chamava –, estive pensando e cheguei à conclusão de que não temos nenhum futuro juntos porque você é muito pobre. Minha família e meus amigos acham que devo procurar uma moça que tenha uma situação financeira como a minha.

Em choque, magoada e sentindo-me humilhada, não acreditava naquilo que estava ouvindo. Disse-lhe então:

– Você tem idéia do que acaba de me dizer? Você sabe que eu te amo, e, além do mais, o que vou falar para minha família?

– Fale o que quiser, não é problema meu!

Dizendo isso, retirou-se. Demorei muito para aceitar essa separação. E o que mais me doía era a prepotência e a arrogância com que me contara a sua decisão. Meus pais o procuraram para uma explicação, porém esse indivíduo desapareceu. Hoje não sei se ainda vive. Se sim, gostaria que soubesse o grande favor que me fez ao me abandonar. Se estivesse com ele, não teria tido a oportunidade e a felicidade de ter como marido um homem maravilhoso como Jouko, o privilégio de ter a experiência de vida, a cultura e o conhecimento que tenho, falando, lendo e escrevendo em quatro idiomas. Se estivesse com ele, talvez hoje fosse pobre de verdade, vivendo na ignorância e na escuridão de não conhecer os direitos humanos e o respeito pela vida, assim como ele, seus amigos e sua família. Felizmente o tempo passou e, com ele, a decepção.


Depois disso, passados dois anos, estávamos todos sentados na sala de Joselita, que estava grávida, quando percebemos que ela estava com contrações. Algumas horas mais tarde, minha irmã deu à luz uma linda menina que recebeu o nome de Jocely Ana, nome esse escolhido por mim em homenagem a uma colega de sala da qual eu gostava muito. Hoje, essa sobrinha é uma das grandes paixões de minha vida. Cuidei dela por algum tempo. Sempre a tive como se fosse a minha própria filha.

Nessa época, meus pais decidiram que nos mudaríamos para Salvador:

– Filha, decidimos vender as duas casas e as terras que temos porque pensamos em mudar para a capital, Salvador. Como sabemos, sua mãe não anda bem de saúde e lá terá o tratamento adequado. Como você está concluindo o ginásio, será a chance de continuar os seus estudos.


Elevador Lacerda - Salvador/Bahia (Foto: Flickr by Áthila Armstrong)

Fomos para Salvador, mas, durante a mudança, a moeda brasileira foi terrivelmente desvalorizada, e quando papai recebeu o dinheiro que havia emprestado a seu primo a juros, só deu para alugar uma casa e comprar um caminhão, que foi destruído posteriormente em um acidente. Sem seguro, perdemos tudo e, para recomeçarmos, papai abriu novamente um armazém.










Wednesday, May 29, 2013

Conde, o inicio de Trilha (parte4)


Quando chegamos à idade de estudar o primeiro ano primário, começamos a frequentar a escola de senhor Arthur e de dona Elza, que também faziam muito esforço para nos identificar. Tiveram que aprender nossa marca registrada, o sinalzinho em meu queixo, até que um dia pediram para trocarmos, pelo menos, a cor da fita do cabelo, e assim o fizemos.

Quando estávamos com dez anos, participamos de todos os eventos da escola. Tínhamos prioridade em tudo que acontecia na vila de pescadores: damas de honra de casamentos, coral da igreja, Festa de Reis, concursos de beleza. Só nos proibiam de ir ao carnaval, vestir calças compridas e frequentar a praia de maiô. Papai falava que essas coisas não eram para moças de família.
Rio Itapicuru, Conde, Bahia (Imagem via Google)
No final dos anos cinquenta, houve uma enchente muito grande no rio Itapicuru, que banha a Cidade do Conde. A vila de pescadores, onde morávamos, chamada Sítio do Conde, ficava a seis quilômetros da praia. O rio, além de ter invadido a Cidade do Conde, chegou até nós. A estrada que liga as duas cidades ficou totalmente alagada, por isso o acesso de uma a outra só era possível de barco ou canoa. A única feira que havia ficava no Conde, e as pessoas tinham de se arriscar, usando suas próprias canoas para comprar mantimentos. Papai tinha um armazém que era abastecido por uma grande loja nessa cidade e, às quatro da manhã de sábado, com a água chegando à porta de nossa cozinha, ele falou para mamãe que precisava pegar a canoa para buscar alguns sacos de açúcar nessa loja. Mamãe disse-lhe:

José, não vá porque a correnteza está muito forte.
Era esse o tipo de canoa utilizado para transportar compras (imagem via Flickr)

Sem escutar o que mamãe dizia, papai pegou sua canoa e seguiu para a cidade. Na volta, com muitos sacos de açúcar e mantimentos, enfrentou uma grande correnteza e não conseguiu controlar sua canoa, que desceu rio abaixo com todas as mercadorias. Mas, apesar disso, como um grande milagre, papai conseguiu agarrar-se a uma árvore e ser salvo por outra canoa que vinha logo em seguida. Em uma época em que as pessoas não tinham ideia do que era ter seguro, papai perdeu tudo.

Para mim e minha irmã, essa situação era muito divertida, era uma nova experiência vermos toda aquela quantidade de água. Tomamos, então, outra canoa de papai e fomos passear. O fofoqueiro de que já falei antes não perdeu tempo e foi correndo contar para papai, que não só brigou conosco, como também nos deu uma surra de cinta.

Quando o rio começou a baixar, podíamos ver muitos bichos, como, por exemplo, cobras e aranhas. Em uma dessas noites, vovó se preparava para dormir quando resolveu procurar uma coisa embaixo de sua cama. Sentiu que havia algo lá, mas não conseguiu visualizar direito, pois a iluminação de seu quarto era de candeeiros. Chamou mamãe, que se deu conta de que, embaixo da cama de vovó, havia, na realidade, uma grande cobra. Todos acordaram com os gritos de mamãe. A vizinhança invadiu nossa casa, todos queriam ver a serpente que nos surpreendeu pelo tamanho. Depois de morta, papai a entregou para um vizinho, e não sei o que ele fez com sua carne e pele.

No ano seguinte, começamos a frequentar uma escola da Prefeitura que tinha acabado de ser inaugurada. Nossa professora, Maria Alice Góes, era muito meiga, tinha muito carinho por nós e, também, dificuldades para nos identificar.
Jangada (Imagem via Google)

De dois em dois dias, à tardinha, voltávamos da escola e íamos para a praia, que ficava a alguns metros de nossa casa, esperávamos a jangada de papai, que sempre vinha carregada de peixes deliciosos, tais como, vermelhos, badejos, dentões, cavalas e capados (peixes que, hoje, estão em extinção no litoral norte do Brasil), além dos roncadores. Sabíamos que logo depois, à noite, iríamos ter para o jantar uma irresistível moqueca feita com leite de coco fresco, cozida no fogão a lenha em panela de barro. Depois do jantar, ajudávamos mamãe e vovó a limparem os peixes e colocarem sal para conservá-los, uma vez que não tínhamos geladeira. Uma parte dos peixes era destinada ao nosso consumo, e a outra, à venda. O que mais gostávamos era de comer as ovas do bobo (peixe pequeno de lagoa) assadas na folha da bananeira, os beijus de tapioca feitos na chapa do fogão, as moquecas de acará[6] e aruá[7], também da lagoa, o feijão verde com quiabo, maxixes[8] e abóboras, esses eram trazidos frescos da roça de papai. Nós também gostávamos das moquecas de camarão de rio e de siri com leite de coco fresco de nossos próprios coqueiros.
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[6] Termo de origem indígena que designa genericamente diversas espécies de peixes.
Acará
Outra espécie de Acará (Imagens via Google)

[7] É um molusco que possui cerca de 15 cm de comprimento e concha castanho-esverdeada.
Aruá (Imagem via Flickr)
[8] É uma planta que tem frutos de casca verde, ovalados e com pequenos espinhos não pontiagudos. No Brasil, é largamente consumido na região nordeste na culinária popular. São comuns os ensopados, as moquecas e cozidos.
Maxixe (Imagem via Google)
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Na festa de São Francisco de Assis, as ruas de Sítio do Conde amanheciam enfeitadas de palmeiras e bandeirolas, pois era a festa do padroeiro da vila. Essa comemoração tinha leilões, queima de fogos, comidas típicas, como na festa do dia de Santa Cruz. Nossa casa ficava cheia de visitas, e a vila, com muitos turistas vindos de Esplanada, Entre Rios, Salvador e Feira de Santana. 
bandeirolas (Imagem Flickr)
Queima de Fogos (|Imagem via Flickr by Cleber Moraes)
Algumas comidas típicas de festa de largo 

Havia alvorada de fogos às cinco da manhã, missa de abertura às seis horas, missa festiva às oito horas e em seguida, às dez horas, casamentos e batizados. Depois, o almoço especial nas casas das famílias. Numa dessas festas, à tarde, antes da procissão, minha irmã, junto com nossas amigas, convidou-me para irmos até a pequena pracinha ver os ônibus que tinham chegado de Alagoinhas. Neles vieram muitos estudantes jovens. Quando nos aproximamos, vi um rapaz que aparentava dezesseis ou dezessete anos. Foi amor à primeira vista. Comecei a tremer porque nunca havia namorado antes. 

Ele me convidou para darmos uma volta na praia e, naquele momento, ganhei o primeiro beijo de minha vida. A partir de então, passamos a nos corresponder. A cada semana recebia uma carta dele, essas eram verdadeiros poemas, até que, três meses depois, recebi uma mensagem de seu irmão dando a terrível notícia de sua morte. Ele havia morrido afogado na piscina do clube. Foi um grande choque para mim, pois, apesar de termos nos encontrado apenas uma vez, estava apaixonada. Os dias foram passando e eu me consolava relendo as suas cartas. Eu tinha, então, treze anos.

Ainda por essa época, certo dia, estávamos sentados à mesa, quando papai falou para minha irmã Joselita:

– Filha, amanhã à noite, virá aqui meu primo Osvaldo que irá pedir sua mão em casamento, e também marcaremos a data. Ele é dezesseis anos mais velho que você, mas acho que é um bom partido.

Não consigo esquecer o olhar de surpresa de minha irmã, pois nem sequer havia namorado antes.

No dia seguinte, a casa estava bem arrumada, o chão, bem varrido, as camas, impecavelmente forradas com lençóis novos; a mesa parecia até um banquete à espera do futuro marido de minha irmã. Eu já estava chorando pelos cantos, sabendo que iríamos nos separar em breve. Joselita aceitava tudo isso um pouco atônita, mas, para ela, que estava entrando na adolescência, tudo era novidade.

Um ano depois, era celebrado o casamento tão esperado naquele lugarejo à beira-mar onde, por menor que fosse, um acontecimento era motivo de curiosidade e festa. O altar de Santa Cruz amanheceu todo enfeitado com flores alvas porque, depois da cerimônia na igreja, haveria uma celebração simbólica em frente ao altar. 


Fotos hosted on Flickr
Foram mortos porcos, carneiros e galinhas para alimentar a quantidade de pessoas convidadas, isso sem falar nos doces. O forró correu solto até o amanhecer, animado pela orquestra da vila: seu Antônio de Alaíde no violão, seu Anísio na sanfona, seu Zé Guela, o marido de tia Cota, no cavaquinho e seu Zuca no pandeiro. A parte mais engraçada da festa foi quando, seguindo a tradição, os noivos ficaram sentados em frente aos convidados e fez-se a fila para retirar o sapato do noivo a fim de colocar dinheiro, esse seria um presente para o casal. Em um dado momento, uma pessoa muito eufórica derrubou o noivo no chão ao retirar seu sapato. Enquanto todos riam, eu, ansiosa, aproximei-me de minha irmã:

– Por favor, minha irmã, não me deixe! Não consigo viver longe de você! Leve-me junto.

Mamãe, ouvindo isso, falou:

– Não, filha! Agora ela já casou e pertence ao marido. Não se preocupe que nós iremos visitá-la sempre que pudermos.

Uma semana depois, mudei-me de mala e cuia para a casa dela no Conde, despertando, assim, a curiosidade dos habitantes, que queriam saber quem era a casada. Sempre me perguntavam, olhando para minha barriga:

– Já tem alguma coisa aí?

Eu já havia concluído o curso primário, e a cidade em que minha irmã morava tinha ginásio. Minha irmã, então, ofereceu-me:

– Eu não tive a oportunidade de estudar muito, mas você, sim. Você irá estudar e ter uma boa educação. Já falei com meu marido e combinamos custear tudo.

Finalmente consegui realizar meu sonho, estudando durante o dia e, nas horas vagas, ajudando-a em casa, embora ela tivesse duas empregadas.
Sabiá-laranjeira (Foto Flickr by Flávio Cruvinel Brandão)
Nas férias escolares na vila de pescadores, em uma tarde de verão ensolarada, eu estava com uma colega de escola e meu passarinho predileto, um sabiá amarelo e preto, com o qual eu conversava, esse fazia parte da criação de pássaros de papai. Coloquei-o em minha mão e confessei-lhe:

– Você sabia que ainda vou conhecer Londres?

– Pobre filha de um simples pescador! Não conhece nem a capital do estado em que mora! – falou-me minha colega. 

Assim, embalada por esse sonho, voltei para casa a fim de ajudar mamãe no jantar. À noite, reuni-me com minhas colegas de ginásio que lá estavam a veranear. Sentadas na calçada, fizemos serenata à luz da lua, até altas horas da noite, sempre com o olhar vigilante de meus pais. 

Na tarde de alguns dias depois, ainda durante as férias, tomamos um grande susto: 

– Dona Elita, – disse um menino para mamãe – nós encontramos, na praia, dentro d’água, agora mesmo, esse pneu. Seu filho Jorge estava nadando com ele, e a onda o trouxe para a terra sem seu filho. Já o procuramos por toda a parte e não o encontramos. 

Com o choque, mamãe desmaiou, sendo necessário chamar o médico. Quando acordou, a casa estava repleta de gente. Ela começou a falar sobre os avisos que já havia dado a Jorge sobre o perigo de ir longe ao mar com aquele pneu.

Ele era dois anos mais novo que eu e minha irmã. A primeira providência foi procurar por meu irmão. Àquela altura, acreditávamos que ele havia se afogado, pois o mar nessa área do Litoral Norte tem muitas ondas fortes e correntezas, principalmente quando a maré está cheia. Nessa época, não havia salva-vidas na praia e, por isso, de vez em quando, alguém morria afogado, principalmente se fosse afoito. As horas passavam e a angústia aumentava em nossa família. Mamãe, desesperada, não parava de chorar. O médico proibiu-a de ir até a praia, mas ela não queria ouvir ninguém. Lá estava, junto à multidão, esperando que o corpo aparecesse. Em uma vila de pescadores tão pequena, dá para imaginar a movimentação das pessoas. 

Nessa noite, ninguém dormiu. Só se ouviam choros e lamentações de mamãe e de todos nós. Lá pelas nove da manhã do outro dia, o que ouvimos de uma das pessoas nos deixou sem fôlego:

– Seu José, dona Elita, olha quem está vindo ali! Aquele não é Jorge?

Lá vinha ele com uma roda de peixes nas mãos.

– Meu Deus, isso é um milagre! – exclamávamos.

Ele estava vivo, já em casa, com a maior despreocupação, como se nada estivesse acontecendo. Contou-nos uma história digna de um filme:

– É, mamãe, me desculpe se assustei vocês, mas estava nadando e passou uma jangada que ia para alto-mar pescar, aí, resolvi pegar uma carona com eles para pescar também.

Mamãe continuou a chorar e a gritar, não sei se de alegria ou de raiva, dizendo:

– Como que você faz uma coisa dessas? Que falta de responsabilidade! 

Estávamos no desespero há quase vinte e quatro horas!

– É, mamãe, desculpe, mas não tive como avisar. Eu estava nadando bem longe e não enxerguei nenhuma pessoa para mandar recado.

Acredito que meu irmão não tinha a mínima idéia das consequências daquele ato tão irresponsável. Tinha apenas 14 anos. Depois disso, mamãe vivia falando que pedia a Deus que não a deixasse perder um filho porque já havia experimentado essa dor e não suportaria tê-la novamente. Nisso Deus foi bondoso com ela. 

Vale lembrar que o tempo mínimo que esses pescadores ficam em alto-mar é de vinte e quatro horas. Eles saem nas jangadas sem nenhuma proteção contra tempestades, tubarões e sem acesso a outros tipos de equipamentos de segurança. Pior ainda, eles não têm nenhum sindicato que os proteja, nem mesmo algum tipo de seguro e ainda vendem os peixes com preços baixos para os atravessadores.













Tuesday, May 28, 2013

Conde, o início da Trilha (parte 3)

Imagem via Google
Naquela época, por sermos as únicas gêmeas da cidade, éramos muito solicitadas para todos os eventos importantes daquele lugar. Certa vez, dona Júlia, a beata da igreja, fez um pedido a papai que veio falar conosco:

– Filhas, dona Júlia me pediu permissão para que vocês façam a coroação de Nossa Senhora no dia 3l de maio. Falei que sim porque acredito que vocês conseguirão fazer bonito: irão de vestido branco, longo e com uma coroa de flores naturais na cabeça.

A igreja estava lotada para ver as gêmeas, as únicas da cidade. A curiosidade era geral, faziam até apostas para identificar quem era quem, mas ninguém conseguia adivinhar. Todos os olhares estavam voltados para nós. Tínhamos até a mesma voz e, como papai queria, fizemos bonito. A partir daí, entramos para o coral da igreja e passamos a participar de todos os seus eventos, sempre com o apoio e o orgulho de nossos pais.

Tudo era festa, até mesmo na hora do trabalho. Nós preparávamos beijus[1] e contávamos com a ajuda de uma amiga e vizinha de mamãe, tia Cota, para a raspagem da mandioca. Ela não tinha filhos, cuidava de nossa irmã Isabel como se fosse sua própria filha e nos ajudava na época da safra.
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[1] Tipo de bolo feito com a goma da tapioca ou da massa de mandioca assada.
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Goma de Tapioca (Imagem via Google)
Beijú de tapioca com recheio de queijo (Imagem via Google)

Beiju de tapioca molhado com leite de côco (Imagem via Google)

beijú de tapioca seco (Imagem via Google)
Para fazer a farinha, era necessária toda uma noite de trabalho. Cantávamos, contávamos piadas e, ao amanhecer, íamos para a Casa de Farinha levar as massas. Depois, íamos para o mato procurar lenha para o grande forno em que torrávamos a farinha. No final, o que mais gostava era dos beijus preparados por mamãe com a tapioca fresca extraída da massa da mandioca. Tínhamos esse doce por vários dias.

Casa de Farinha (foto mostra forno onde é torrada a farinha de mandioca e onde são assados os beijús). Imagem via Google

Ainda tínhamos, em casa, todos os anos, a comemoração do Dia de Santa Cruz. Fazíamos muitos bolos e iguarias para serem leiloados na noite da festa, depois da reza. Papai também leiloava porcos, carneiros e galinhas gordas. A mesa era repleta de iguarias, como, por exemplo, vatapá[1], caruru[2], moqueca de peixe fresco, moqueca de camarão, efó[3], acarajé, abará[4], bolo de puba[5], bolo de tapioca, bolo de aipim, milho verde, beiju, pamonha, cocada queijadinha, bolachinha de goma e cocadinha branca. Os convidados chegavam e tomavam seus lugares na sala para dar início à reza. O altar era muito bonito, enfeitado com papel crepom e muitas flores. Depois da reza, começavam os comes e bebes e, finalmente, os fogos de artifício e o leilão, que eram as principais atrações da festa. Vinham pessoas das redondezas, principalmente para conhecer as gêmeas, que eram incrivelmente iguais. Depois havia sempre um forró para animar.
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[1] Prato típico da cozinha da Bahia.O seu preparo pode incluir pão molhado ou farinha de rosca, fubágengibrepimenta-malaguetaamendoim, castanha de caju, leite de coco, azeite-de-dendê,cebola e tomate. 
Vatapá
 [2] Prato típico da culinária baiana, originalmente africano, feito com o quiabo, a pimenta-malagueta, camarão seco e dendê.

Carurú

[3] Prato típico da cozinha da Bahia. É feito com camarão seco, verdura (espinafre ou mostarda), cebola, alho, pimenta e coentro. 
Efó
[4] Um dos pratos da culinária baiana.Tem a mesma massa que o acarajé: a única diferença é que o abará é cozido, enquanto o acarajé é frito.
Abará


[5] Puba é uma massa extraída da mandioca fermentada e largamente utilizada na produção de bolos, biscoitos e diversas outras receitas típicas do norte-nordeste brasileiro
Puba

Monday, May 27, 2013

Conde, o início da Trilha (parte2)


Em outra situação, fomos brincar na lagoa chamada Passaginha, na qual gostávamos muito de nadar. Lá, tomávamos banho, lavávamos nossas roupas e passeávamos de canoa. O fofoqueiro da cidade, chamado Sinhozinho, que não tinha o que fazer, vivia vigiando nossos passos e contava para papai tudo que fazíamos. Dedurou-nos quando pegamos a canoa de papai sem lhe pedir. Como se não bastasse, perdemos todos os camarões que havíamos ido lavar na lagoa. Quando vi papai, fui logo me desculpando:

– Pai, por favor, desculpe-me! Os porcos comeram todos os camarões que levamos para lavar na lagoa. Litinha me convenceu de pegarmos a canoa para darmos uma voltinha na Passaginha, e quando voltamos o cesto estava vazio.

E papai, furioso, perguntou:
– Onde está sua irmã?

Ao mesmo tempo, minha irmã chegava com um pote cheio de água na cabeça.


representação do pote de água na cabeça (foto: via google)

Enquanto batia nela, papai lhe dizia:
– Se você derrubar esse pote, vai apanhar em dobro.

Minha irmã, heroicamente, manteve o pote na cabeça. Logicamente, também recebi minha punição.

Nesse mesmo período, foi com tristeza que mamãe recebeu a notícia da morte da irmã de papai que vivia na roça e não tinha nenhum recurso. Não resistiu à complicação que teve durante o parto do quarto filho, essa foi causada por uma hemorragia. Depois que a criança nasceu forte e saudável, ela veio a falecer. Além de ser minha madrinha, era como se fosse uma irmã querida para mamãe. O principal motivo dessa grande amizade era que ela tinha sido a única das irmãs de papai, melhor dizendo, a única de sua família que ficou ao lado deles quando se casaram. Meus pais saíram imediatamente para o funeral após a notícia, a cavalo, porque era o único meio de transporte que tinham. Mamãe demorou bastante para se recuperar dessa imensurável perda.

Nessa mesma época, nós estávamos todos reunidos na sala de jantar, mas papai não estava presente, pois havia ficado no armazém, quando algo ruim nos aconteceu. Minha mãe tinha uma irmã, tia Edmeia, que morava desde mocinha na capital da Bahia e tinha vindo nos visitar depois de muitos anos ausente. A alegria era geral até que foi interrompida pelos gritos de uma cunhada de mamãe. Corremos todos para a porta de casa e vimos papai caído em uma poça de sangue, com um ferimento no braço esquerdo. Havia levado uma facada de um homem que era seu rival na política, uma vez que papai era cabo eleitoral de outro político. Só não foi morto porque, na hora em que foi jogada a faca, papai defendeu-se com o braço, mas, mesmo assim, o ferimento foi muito profundo, derrubando-o. Até então, não havíamos conhecido o sofrimento. A cunhada de mamãe chegou exatamente na hora em que o homem estava tentando pular o balcão e terminar de matar nosso pai. 

Quando ela gritou, o homem correu. O hospital mais próximo era distante cinquenta quilômetros da vila por estrada de terra, e o único meio de transporte era um jipe velho que andava a apenas quarenta quilômetros por hora. Ele foi socorrido somente algumas horas depois, pois não encontramos o dono do jipe para transportá-lo. Quando conseguimos o transporte, papai foi levado para o hospital em Esplanada, uma cidade próxima à nossa. Chegando lá, o médico disse para mamãe que não havia muita chance de sobrevivência já que ele havia perdido muito sangue. Tínhamos muita fé em Deus, e isso nos ajudou bastante a não perdermos as esperanças. Depois de alguns dias no hospital, papai retornou para casa e, aos poucos, foi se recuperando. O criminoso fugiu. Naquela época, o trabalho da polícia era muito precário, pois, além da falta de preparo, existia a falta de transportes. O caso foi encerrado, a impunidade permaneceu, e, muitos anos depois, soubemos que o criminoso estava paralítico em cima de uma cama. Teria sido feita a justiça? 









Sunday, May 26, 2013

Conde, o início da Trilha (parte 1)

Nosso pai José, eu e minha irmã gêmea Joselita

O jovem agricultor José, sem dinheiro no bolso, sem casa, sem nenhuma perspectiva de um futuro melhor e com apenas dezoito anos, desafiou os pais, venceu a tudo e a todos se casando com Elita, uma jovem de apenas dezesseis anos, também pobre, filha de um simples pescador casado com uma dona de casa que não sabia ler e nem escrever. Elita era descendente de negro e índio, e essa era a razão do descontentamento da família de José em relação a essa união. A discriminação foi grande por parte dessa família que, apesar de também ser pobre, tinha descendência de espanhóis, o que era, para eles, motivo de orgulho. Entretanto, o amor desse jovem casal foi mais forte do que tudo.
Eu e minha irmã gêmea Joselita
Eu e minha mãe Elita, saudades eternas...

Um ano depois, em uma tarde chuvosa do dia 13 de julho de 1948, a família do jovem casal aumentou com a chegada das primeiras filhas que eram gêmeas. Nasciam, em uma vila pobre de pescadores, chamada Sítio do Conde, no Estado da Bahia, duas meninas: Maria José e Joselita. Naquela época, por não haver nenhuma tecnologia nessa cidade, José não tinha como saber que Elita daria à luz duas filhas ao mesmo tempo.

Eu fui a primeira a nascer, recebendo o nome de Maria José. Dez minutos depois, nascia a minha irmã, Joselita, que recebeu esse nome em razão da união dos nomes de nossos pais: José e Elita.

Após dois anos, nascia mais um filho e, depois, outra filha e, assim, passados doze anos, a família já estava completa com oito filhos.

Nossa casa era de chão batido e telhado de palha de coqueiro. Não tinha eletricidade, a luz era de candeeiros e não havia saneamento básico. Dormíamos em jiraus, que eram camas feitas de toros de madeira cobertos com palha de coqueiro. Apesar de sermos bem pobres, nossa mesa era sempre farta, pois meu pai trabalhava duro, quase não tinha tempo para dormir. Pescava, tinha roça com legumes variados, hortaliças e frutas. Tínhamos muitas árvores frutíferas como mangueiras, goiabeiras, pés de carambola e coqueiros. Nesse lar, além de três quartos, havia outra entrada que papai aproveitou para montar um armazém, a fim de aumentar o orçamento doméstico. Como não tínhamos brinquedos, construíamos casinhas com palhas secas dos coqueiros e, aos domingos, fazíamos nelas piqueniques com a comida que mamãe nos dava para cozinhar nas nossas panelinhas de barro, em um fogão a lenha.

Minha avó materna, viúva, com uma filha também pequena, ajudava muito meu pai, era seu braço direito. Além disso, trabalhava nos afazeres da casa. A família, portanto, era constituída de doze pessoas: papai, mamãe, minha avó materna e nove crianças. Sentávamos todos à mesa e, antes de começar a refeição, rezávamos em agradecimento a Deus pelo alimento.

Essa casa tinha pertencido a uma velhinha muito amiga da família. Por isso, quando papai a comprou, além de um precinho bem camarada, teve condições de pagamento bastante flexíveis. Aos poucos, ele foi consertando e melhorando nosso lar. Após a morte da velhinha, passado algum tempo, um de nossos irmãos nasceu, e, como naquela época as mulheres tinham filhos em casa, papai teve que dormir no corredor, em uma esteira, porque a cama de casal estava ocupada com mamãe e o bebê. Papai conta que, nesse dia, sonhou com a velhinha, que lhe dava a localização de uma grande panela de ferro enterrada com muitas jóias. No dia seguinte, papai contou essa história, ele estava um pouco assustado e temeroso, pois, esse sonho lhe parecia bastante real. Decidiu não procurar tal tesouro. Algum tempo depois, alguém na cidade estava vendendo joias antigas e dizendo que as tinha recebido de herança de uma pessoa morta. Ainda existem pessoas na cidade que acreditam que teria sido essa a herança oferecida a papai no sonho.

Depois de algum tempo, com o fruto do trabalho de meu pai, conseguimos comprar uma casa de tijolos e telhado de verdade. Essa era simples, com três quartos, duas salas, um grande corredor, cozinha com fogão a lenha e quintal, porém nessa casa não havia nem banheiro e nem energia elétrica. Éramos uma família humilde, mas havia algo que nos diferenciava de todas as famílias do Sítio do Conde, o fato de existirem duas filhas gêmeas idênticas, o que causava algumas situações pitorescas.

Rinha de Galo

Num certo dia, recebemos a visita de um moço que morava em outra cidade e estava pela primeira vez em nossa casa para comprar um galo de briga, esse fazia parte da coleção que papai criava. A briga de galo, conhecida também como rinha, era, naquela época, um acontecimento esperado todos os domingos. As pessoas agrupavam-se em volta da rinha, apostavam dinheiro nos galos considerados imbatíveis e, com isso, passavam o tempo. O referido moço, ao chegar à nossa casa, dirigiu-se, intrigado, a nosso pai:

– Sr. José, o que está acontecendo? Estou tendo uma alucinação? Vi agora, na entrada, uma linda menina de trancinhas, vestida de branco, rindo para mim. Falei com ela, que me disse que o senhor estava a minha espera. Mandou-me entrar, e agora estou vendo ela aqui na minha frente. Tenho certeza de que ela não entrou comigo.

Papai respondeu ao moço:

– Essa menina sempre esteve aqui comigo na sala de jantar, e o senhor deve ter visto nossa outra filha.

– Que outra? - perguntou o homem surpreso.

– A irmã gêmea dessa que está aqui. - respondeu meu pai.

– Ah, sim? E como se chama essa menina?

Papai, confuso, não soube responder:

– Senhor, na verdade, não sei se é Maria José ou Joselita, pois só as diferencio através de um sinal praticamente invisível que Maria José tem no queixo e que só consigo identificar quando as duas estão juntas em minha frente.

– Sabe, senhor – dizia papai ainda ao moço –, essas duas meninas são meu tesouro e meu orgulho. Faço questão que tenham o mesmo penteado, os mesmos tipos de roupas e sapatos e até o mesmo comportamento.

Felizmente, para papai, não era preciso nenhum esforço por parte dele para que isso acontecesse, pois nós éramos literalmente iguais.

Lembro-me ainda de que, naquela época, além de frequentarmos a escola, tínhamos que ajudar a cuidar de nossos irmãos pequenos, lavar roupas na fonte, buscar lenha para o fogão e água nas cisternas da vizinhança para abastecer a casa. À tardinha, com um tabuleiro na cabeça, saíamos às ruas para vender as cocadas e os doces feitos por nossa avó. E, como qualquer criança, éramos cheias de energia e vivíamos aprontando. Em nossas artes, levávamos broncas de papai:

– Desçam já as duas, agora! Vou dar uma surra em vocês! Onde já se viu vir da escola ainda com uniforme e subir nessa árvore para comer cruiri? Sua mãe está com o almoço pronto esperando por vocês.

Minha irmã falou para mim:
– Iaiá, desça você primeiro.
– Desça você porque a ideia foi sua! – respondi.

Em vez de descer, ela pulou da árvore e teve um corte muito feio na coxa esquerda. Desci devagarzinho e tomei uma boa surra de meu pai, que estava a minha espera com uma cinta na mão. Minha irmã foi poupada da surra em razão do ferimento na perna. Foi a última vez que subimos naquela árvore. Nessa época, tínhamos apenas sete anos.