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Wednesday, May 29, 2013

Conde, o inicio de Trilha (parte4)


Quando chegamos à idade de estudar o primeiro ano primário, começamos a frequentar a escola de senhor Arthur e de dona Elza, que também faziam muito esforço para nos identificar. Tiveram que aprender nossa marca registrada, o sinalzinho em meu queixo, até que um dia pediram para trocarmos, pelo menos, a cor da fita do cabelo, e assim o fizemos.

Quando estávamos com dez anos, participamos de todos os eventos da escola. Tínhamos prioridade em tudo que acontecia na vila de pescadores: damas de honra de casamentos, coral da igreja, Festa de Reis, concursos de beleza. Só nos proibiam de ir ao carnaval, vestir calças compridas e frequentar a praia de maiô. Papai falava que essas coisas não eram para moças de família.
Rio Itapicuru, Conde, Bahia (Imagem via Google)
No final dos anos cinquenta, houve uma enchente muito grande no rio Itapicuru, que banha a Cidade do Conde. A vila de pescadores, onde morávamos, chamada Sítio do Conde, ficava a seis quilômetros da praia. O rio, além de ter invadido a Cidade do Conde, chegou até nós. A estrada que liga as duas cidades ficou totalmente alagada, por isso o acesso de uma a outra só era possível de barco ou canoa. A única feira que havia ficava no Conde, e as pessoas tinham de se arriscar, usando suas próprias canoas para comprar mantimentos. Papai tinha um armazém que era abastecido por uma grande loja nessa cidade e, às quatro da manhã de sábado, com a água chegando à porta de nossa cozinha, ele falou para mamãe que precisava pegar a canoa para buscar alguns sacos de açúcar nessa loja. Mamãe disse-lhe:

José, não vá porque a correnteza está muito forte.
Era esse o tipo de canoa utilizado para transportar compras (imagem via Flickr)

Sem escutar o que mamãe dizia, papai pegou sua canoa e seguiu para a cidade. Na volta, com muitos sacos de açúcar e mantimentos, enfrentou uma grande correnteza e não conseguiu controlar sua canoa, que desceu rio abaixo com todas as mercadorias. Mas, apesar disso, como um grande milagre, papai conseguiu agarrar-se a uma árvore e ser salvo por outra canoa que vinha logo em seguida. Em uma época em que as pessoas não tinham ideia do que era ter seguro, papai perdeu tudo.

Para mim e minha irmã, essa situação era muito divertida, era uma nova experiência vermos toda aquela quantidade de água. Tomamos, então, outra canoa de papai e fomos passear. O fofoqueiro de que já falei antes não perdeu tempo e foi correndo contar para papai, que não só brigou conosco, como também nos deu uma surra de cinta.

Quando o rio começou a baixar, podíamos ver muitos bichos, como, por exemplo, cobras e aranhas. Em uma dessas noites, vovó se preparava para dormir quando resolveu procurar uma coisa embaixo de sua cama. Sentiu que havia algo lá, mas não conseguiu visualizar direito, pois a iluminação de seu quarto era de candeeiros. Chamou mamãe, que se deu conta de que, embaixo da cama de vovó, havia, na realidade, uma grande cobra. Todos acordaram com os gritos de mamãe. A vizinhança invadiu nossa casa, todos queriam ver a serpente que nos surpreendeu pelo tamanho. Depois de morta, papai a entregou para um vizinho, e não sei o que ele fez com sua carne e pele.

No ano seguinte, começamos a frequentar uma escola da Prefeitura que tinha acabado de ser inaugurada. Nossa professora, Maria Alice Góes, era muito meiga, tinha muito carinho por nós e, também, dificuldades para nos identificar.
Jangada (Imagem via Google)

De dois em dois dias, à tardinha, voltávamos da escola e íamos para a praia, que ficava a alguns metros de nossa casa, esperávamos a jangada de papai, que sempre vinha carregada de peixes deliciosos, tais como, vermelhos, badejos, dentões, cavalas e capados (peixes que, hoje, estão em extinção no litoral norte do Brasil), além dos roncadores. Sabíamos que logo depois, à noite, iríamos ter para o jantar uma irresistível moqueca feita com leite de coco fresco, cozida no fogão a lenha em panela de barro. Depois do jantar, ajudávamos mamãe e vovó a limparem os peixes e colocarem sal para conservá-los, uma vez que não tínhamos geladeira. Uma parte dos peixes era destinada ao nosso consumo, e a outra, à venda. O que mais gostávamos era de comer as ovas do bobo (peixe pequeno de lagoa) assadas na folha da bananeira, os beijus de tapioca feitos na chapa do fogão, as moquecas de acará[6] e aruá[7], também da lagoa, o feijão verde com quiabo, maxixes[8] e abóboras, esses eram trazidos frescos da roça de papai. Nós também gostávamos das moquecas de camarão de rio e de siri com leite de coco fresco de nossos próprios coqueiros.
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[6] Termo de origem indígena que designa genericamente diversas espécies de peixes.
Acará
Outra espécie de Acará (Imagens via Google)

[7] É um molusco que possui cerca de 15 cm de comprimento e concha castanho-esverdeada.
Aruá (Imagem via Flickr)
[8] É uma planta que tem frutos de casca verde, ovalados e com pequenos espinhos não pontiagudos. No Brasil, é largamente consumido na região nordeste na culinária popular. São comuns os ensopados, as moquecas e cozidos.
Maxixe (Imagem via Google)
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Na festa de São Francisco de Assis, as ruas de Sítio do Conde amanheciam enfeitadas de palmeiras e bandeirolas, pois era a festa do padroeiro da vila. Essa comemoração tinha leilões, queima de fogos, comidas típicas, como na festa do dia de Santa Cruz. Nossa casa ficava cheia de visitas, e a vila, com muitos turistas vindos de Esplanada, Entre Rios, Salvador e Feira de Santana. 
bandeirolas (Imagem Flickr)
Queima de Fogos (|Imagem via Flickr by Cleber Moraes)
Algumas comidas típicas de festa de largo 

Havia alvorada de fogos às cinco da manhã, missa de abertura às seis horas, missa festiva às oito horas e em seguida, às dez horas, casamentos e batizados. Depois, o almoço especial nas casas das famílias. Numa dessas festas, à tarde, antes da procissão, minha irmã, junto com nossas amigas, convidou-me para irmos até a pequena pracinha ver os ônibus que tinham chegado de Alagoinhas. Neles vieram muitos estudantes jovens. Quando nos aproximamos, vi um rapaz que aparentava dezesseis ou dezessete anos. Foi amor à primeira vista. Comecei a tremer porque nunca havia namorado antes. 

Ele me convidou para darmos uma volta na praia e, naquele momento, ganhei o primeiro beijo de minha vida. A partir de então, passamos a nos corresponder. A cada semana recebia uma carta dele, essas eram verdadeiros poemas, até que, três meses depois, recebi uma mensagem de seu irmão dando a terrível notícia de sua morte. Ele havia morrido afogado na piscina do clube. Foi um grande choque para mim, pois, apesar de termos nos encontrado apenas uma vez, estava apaixonada. Os dias foram passando e eu me consolava relendo as suas cartas. Eu tinha, então, treze anos.

Ainda por essa época, certo dia, estávamos sentados à mesa, quando papai falou para minha irmã Joselita:

– Filha, amanhã à noite, virá aqui meu primo Osvaldo que irá pedir sua mão em casamento, e também marcaremos a data. Ele é dezesseis anos mais velho que você, mas acho que é um bom partido.

Não consigo esquecer o olhar de surpresa de minha irmã, pois nem sequer havia namorado antes.

No dia seguinte, a casa estava bem arrumada, o chão, bem varrido, as camas, impecavelmente forradas com lençóis novos; a mesa parecia até um banquete à espera do futuro marido de minha irmã. Eu já estava chorando pelos cantos, sabendo que iríamos nos separar em breve. Joselita aceitava tudo isso um pouco atônita, mas, para ela, que estava entrando na adolescência, tudo era novidade.

Um ano depois, era celebrado o casamento tão esperado naquele lugarejo à beira-mar onde, por menor que fosse, um acontecimento era motivo de curiosidade e festa. O altar de Santa Cruz amanheceu todo enfeitado com flores alvas porque, depois da cerimônia na igreja, haveria uma celebração simbólica em frente ao altar. 


Fotos hosted on Flickr
Foram mortos porcos, carneiros e galinhas para alimentar a quantidade de pessoas convidadas, isso sem falar nos doces. O forró correu solto até o amanhecer, animado pela orquestra da vila: seu Antônio de Alaíde no violão, seu Anísio na sanfona, seu Zé Guela, o marido de tia Cota, no cavaquinho e seu Zuca no pandeiro. A parte mais engraçada da festa foi quando, seguindo a tradição, os noivos ficaram sentados em frente aos convidados e fez-se a fila para retirar o sapato do noivo a fim de colocar dinheiro, esse seria um presente para o casal. Em um dado momento, uma pessoa muito eufórica derrubou o noivo no chão ao retirar seu sapato. Enquanto todos riam, eu, ansiosa, aproximei-me de minha irmã:

– Por favor, minha irmã, não me deixe! Não consigo viver longe de você! Leve-me junto.

Mamãe, ouvindo isso, falou:

– Não, filha! Agora ela já casou e pertence ao marido. Não se preocupe que nós iremos visitá-la sempre que pudermos.

Uma semana depois, mudei-me de mala e cuia para a casa dela no Conde, despertando, assim, a curiosidade dos habitantes, que queriam saber quem era a casada. Sempre me perguntavam, olhando para minha barriga:

– Já tem alguma coisa aí?

Eu já havia concluído o curso primário, e a cidade em que minha irmã morava tinha ginásio. Minha irmã, então, ofereceu-me:

– Eu não tive a oportunidade de estudar muito, mas você, sim. Você irá estudar e ter uma boa educação. Já falei com meu marido e combinamos custear tudo.

Finalmente consegui realizar meu sonho, estudando durante o dia e, nas horas vagas, ajudando-a em casa, embora ela tivesse duas empregadas.
Sabiá-laranjeira (Foto Flickr by Flávio Cruvinel Brandão)
Nas férias escolares na vila de pescadores, em uma tarde de verão ensolarada, eu estava com uma colega de escola e meu passarinho predileto, um sabiá amarelo e preto, com o qual eu conversava, esse fazia parte da criação de pássaros de papai. Coloquei-o em minha mão e confessei-lhe:

– Você sabia que ainda vou conhecer Londres?

– Pobre filha de um simples pescador! Não conhece nem a capital do estado em que mora! – falou-me minha colega. 

Assim, embalada por esse sonho, voltei para casa a fim de ajudar mamãe no jantar. À noite, reuni-me com minhas colegas de ginásio que lá estavam a veranear. Sentadas na calçada, fizemos serenata à luz da lua, até altas horas da noite, sempre com o olhar vigilante de meus pais. 

Na tarde de alguns dias depois, ainda durante as férias, tomamos um grande susto: 

– Dona Elita, – disse um menino para mamãe – nós encontramos, na praia, dentro d’água, agora mesmo, esse pneu. Seu filho Jorge estava nadando com ele, e a onda o trouxe para a terra sem seu filho. Já o procuramos por toda a parte e não o encontramos. 

Com o choque, mamãe desmaiou, sendo necessário chamar o médico. Quando acordou, a casa estava repleta de gente. Ela começou a falar sobre os avisos que já havia dado a Jorge sobre o perigo de ir longe ao mar com aquele pneu.

Ele era dois anos mais novo que eu e minha irmã. A primeira providência foi procurar por meu irmão. Àquela altura, acreditávamos que ele havia se afogado, pois o mar nessa área do Litoral Norte tem muitas ondas fortes e correntezas, principalmente quando a maré está cheia. Nessa época, não havia salva-vidas na praia e, por isso, de vez em quando, alguém morria afogado, principalmente se fosse afoito. As horas passavam e a angústia aumentava em nossa família. Mamãe, desesperada, não parava de chorar. O médico proibiu-a de ir até a praia, mas ela não queria ouvir ninguém. Lá estava, junto à multidão, esperando que o corpo aparecesse. Em uma vila de pescadores tão pequena, dá para imaginar a movimentação das pessoas. 

Nessa noite, ninguém dormiu. Só se ouviam choros e lamentações de mamãe e de todos nós. Lá pelas nove da manhã do outro dia, o que ouvimos de uma das pessoas nos deixou sem fôlego:

– Seu José, dona Elita, olha quem está vindo ali! Aquele não é Jorge?

Lá vinha ele com uma roda de peixes nas mãos.

– Meu Deus, isso é um milagre! – exclamávamos.

Ele estava vivo, já em casa, com a maior despreocupação, como se nada estivesse acontecendo. Contou-nos uma história digna de um filme:

– É, mamãe, me desculpe se assustei vocês, mas estava nadando e passou uma jangada que ia para alto-mar pescar, aí, resolvi pegar uma carona com eles para pescar também.

Mamãe continuou a chorar e a gritar, não sei se de alegria ou de raiva, dizendo:

– Como que você faz uma coisa dessas? Que falta de responsabilidade! 

Estávamos no desespero há quase vinte e quatro horas!

– É, mamãe, desculpe, mas não tive como avisar. Eu estava nadando bem longe e não enxerguei nenhuma pessoa para mandar recado.

Acredito que meu irmão não tinha a mínima idéia das consequências daquele ato tão irresponsável. Tinha apenas 14 anos. Depois disso, mamãe vivia falando que pedia a Deus que não a deixasse perder um filho porque já havia experimentado essa dor e não suportaria tê-la novamente. Nisso Deus foi bondoso com ela. 

Vale lembrar que o tempo mínimo que esses pescadores ficam em alto-mar é de vinte e quatro horas. Eles saem nas jangadas sem nenhuma proteção contra tempestades, tubarões e sem acesso a outros tipos de equipamentos de segurança. Pior ainda, eles não têm nenhum sindicato que os proteja, nem mesmo algum tipo de seguro e ainda vendem os peixes com preços baixos para os atravessadores.













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