Foto via Google (Crédito: mrm.mendes ) |
Pegamos as poucas coisas que nos restaram e nos mudamos para o Rio Grande do Sul, onde morava toda a família dele, começando, ali, meu verdadeiro sofrimento. Estava com um mês de gravidez de nosso segundo filho. Lá chegando, fui imediatamente discriminada por sua família, eles eram descendentes de alemães e italianos, e eu, apesar de branca, tinha em minhas veias sangue de índio e negro. Fomos morar com meus sogros porque não tínhamos condições de alugar uma casa e comprar móveis novos. Eu fazia de tudo para ser amável e querida por minha sogra, mas não adiantava. Ela era insensível a ponto de me deixar passando frio. Meu sogro era uma alma boa, um grande homem, mas ficava neutro porque tinha muito medo da mulher. Como eu sentia frio, uma vizinha deu-me alguns casacos. Meu cunhado, depois de ter conhecido minha família, passou a defender-me:
– Minha mulher e minha sogra, o que vocês estão fazendo com Maria José é injusto! Acabo de chegar da Bahia, conheci a família dela e afirmo que são pessoas decentes. Na verdade, ela merecia uma sorte melhor.
Quem estava me defendendo era o marido de minha cunhada. E essa, que era pior que uma víbora, rapidamente respondeu:
– Admita que você a defende porque está indo para a cama com ela!
– Não, isso não é verdade! O que você está dizendo é uma calúnia! Eu apenas a admiro, ela é uma pessoa decente e sofredora. Quisera eu que estivéssemos à altura dela.
Pelo menos meu marido sempre esteve ao meu lado, assim como um de seus irmãos e a esposa dele. Esse casal, sim, protegia-me muito, eram pessoas maravilhosas. A esposa era uma grande amiga e uma excelente pessoa. Eu gostava tanto dela que, posteriormente, dei minha filha, Anapaula, para ela e o marido batizarem.
Eu já estava grávida de quatro meses e com sete meses de casada quando, finalmente, conseguimos alugar uma casa, pois meu marido já estava trabalhando. Nós nos isolamos da família dele. Eu tinha muito medo de minha cunhada porque ela vivia dizendo que ia me dar uma surra se me encontrasse, estando eu grávida ou não. Os meses foram passando, a barriga crescendo, e, a cada dia, curtíamos mais aquele filho.
Após o sétimo mês, sentia-me muito inchada, às vezes nem conseguia dormir. O médico dizia que era normal. Eu tinha muitas saudades de minha família, principalmente de minha irmã gêmea. Naquela época, a distância entre a Bahia e o Rio Grande do Sul era grande porque não existiam os atuais recursos tecnológicos de comunicação. Ao menos, tinha ao meu lado um marido cuidando bem de mim.
Certo dia, eu estava jantando quando meu marido chegou do trabalho e, apreensivo, olhou para mim, dizendo:
– Por favor, pare de comer agora. Vou levá-la já para o hospital.
Ele percebeu que eu estava com umas placas avermelhadas no rosto. Respondi-lhe que não iria a lugar algum, pois não estava sentindo nada.
– Sim, você irá. Quero que o médico a examine agora! – insistiu ele.
Dez minutos depois, eu já estava no hospital, sentindo muita dor de cabeça e febre. E lá tentaram localizar o meu médico particular. Não tenho consciência de quanto tempo passou. Quando abri os olhos, vi uma freira com um olhar bondoso dizendo-me:
Imagem via Google |
– Você teve uma menina. Ela pesa dois quilos e oitocentos gramas, nasceu prematura, com duas semanas de antecedência. Por isso, foi para a incubadora.
– Irmã, o que aconteceu comigo? Não consigo me lembrar de nada. – disse a ela.
–Você teve pré-eclâmpsia e, graças a Deus, seu marido percebeu a tempo e a trouxe para o hospital. Você irá se recuperar, mas para isso ficará alguns dias aqui. Não se preocupe, tudo vai ficar bem. – confortou-me a irmã.
Alguns dias depois, a ambulância do Hospital Nossa Senhora Pompeia levava-me para casa. Entretanto, percebi que havia alguma coisa errada. Quando baixei a cinta que usava percebi que a cicatriz da cesariana sangrava muito. Meu marido, preocupado, disse-me para deitar e não me mexer, pois achava que a cicatriz estava um pouco aberta. Já de volta ao hospital, soube pelo médico que havia alguns pontos abertos que precisariam ser corrigidos. Quando acordei da anestesia, o médico explicou-me que, quando foi feita a cesariana, eles não tiveram tempo de fazer alguns procedimentos normais necessários a esse tipo de cirurgia. E como estava de estômago cheio, vomitei muito, forçando os tecidos ao redor do corte.
Após um mês, ainda extremamente fraca, decidi ir ao supermercado para comprar um produto do mingau de Anapaula. Quando estava no caixa, ouvi uma voz histérica atrás de mim que dizia:
– Prepare-se para morrer agora, sua vagabunda! Nunca mais você vai tomar o marido de outra mulher!
Era minha cunhada, tentando me enforcar com o cabo de um guarda-chuva. Ela tinha ciúmes apenas porque seu marido me defendia das injustiças que ela e minha sogra cometiam contra mim. Fui socorrida pelo gerente do supermercado, que logo chamou a ambulância. Àquela altura, eu já estava desmaiada. O caso foi parar na justiça, mas não esperei pelos resultados porque não suportava mais tantas humilhações e sofrimentos. Hoje, depois de tantos anos, percebo que a maldade de algumas pessoas, como a da irmã de meu ex-marido, não tem limites. Ela havia criado em sua cabeça suja a idéia de que eu dormia com seu marido. Apesar de tudo que ela fez comigo, do tanto que ela me machucou, prevaleceu a impunidade. Hoje, isso não mais me aborrece porque estou em situação muito mais privilegiada que a dela, nós temos níveis culturais diferentes e não falamos mais a mesma língua.
Foto: Flickr by Carlos Alkmin |
Acabei voltando para a Bahia somente com minha filha de um pouco mais de um mês. Na descida do Rio de Janeiro, com a criança no colo, perdi minhas forças e desmaiei. Quando acordei, estava em uma sala do aeroporto sendo atendida por um médico. Por causa da queda de pressão, teria que esperar algumas horas para seguir viagem para Salvador, ou melhor, eu embarcaria em um voo com um time de futebol do Rio já que nele, segundo me informaram, poderia contar com um médico, caso houvesse necessidade.
Na casa de meus pais, fui recebida com muita alegria, apoio e carinho. Porém, passados alguns meses, meu marido não aguentou as saudades e foi me buscar de volta para o Sul. Chegando a Caxias, onde tínhamos morado, não havia mais apartamento nem mesmo móveis. Meu marido havia vendido tudo. Rumamos, então, para Porto Alegre a fim de tentar uma nova vida. Moramos por alguns meses em um pensionato no centro dessa cidade enquanto ele procurava trabalho. Como não encontrava, entregava-se à bebida. Finalmente decidimos retornar à Bahia. Mas havia o impasse de como conseguir dinheiro para as passagens. Certo dia, ele me disse:
– Encontrei um velho conhecido que amanhã cedo conduzirá um ônibus a Salvador, para uso urbano, e ofereceu-nos carona. Sei que a viagem é longa e desconfortável, mas parece que não temos outra opção.
Conseguimos algum dinheiro emprestado para a comida e seguimos viagem com nossa filha de apenas oito meses. Acomodamos o bebê em uma banheira no piso do ônibus. Viajamos dois dias e meio até São Paulo. Em função da falta de aquecimento no ônibus, Anapaula contraiu uma pneumonia, o que nos fez levá-la a uma clínica de emergência. Contei minha situação ao médico, ele nos atendeu e conseguiu os remédios gratuitamente.
Tipo de ônibus urbano (Foto: Flickr by Fernando Picarelli) |
Seguimos para o Rio de Janeiro e, para nossa surpresa e desespero, o ônibus não podia mais continuar viagem. Falei a meu marido:
– O que fazer agora? Acho que a única saída é telefonar para Carminha, minha tia-irmã que mora em Salvador.
Carminha era a única da família que tinha telefone na época. Recebemos, no dia seguinte, via ordem de pagamento, o dinheiro para comprarmos nossas passagens para Salvador.
Ficamos algum tempo com minha família, que havia voltado a morar no Conde. Quando meu marido conseguiu trabalho, fomos morar em Salvador em um apartamento de quarto e sala. Tudo poderia ter ficado bem se não fosse seu problema com a bebida. Eu tentava desesperadamente salvar meu casamento suportando toda essa situação. Acidentalmente, fiquei grávida do segundo filho. Com o apoio de minha família, segui vivendo.
No mês de março de l974, com seis meses de gravidez, enfrentei um dos piores momentos de minha vida, a cirurgia complicada de minha irmã gêmea. Devido a um sangramento via oral, ela teve de se submeter a uma cirurgia para retirar o baço e operar o esôfago por causa da formação de pequenas varizes que provocavam vômito.
Após algumas horas de cirurgia, ela foi transferida para um apartamento no Hospital Português. Logo depois, começou a passar mal com início de hemorragia interna. O médico foi chamado às pressas e, ali mesmo, no quarto, através de outro corte no abdômen, operou-a e salvou-lhe a vida sem nem ter tempo de levá-la ao centro cirúrgico. Restava, agora, segundo os médicos, apenas um milagre para que ela se recuperasse. Mas, com tantas orações, com tanta fé e amor da família e dos amigos, recuperou-se depois de dois meses no hospital.
No mesmo ano de 1974, no dia 4 de julho, nascia de parto cesariana, minha outra filha, uma linda menina que recebeu o nome de Adriana. Infelizmente, ela teve que permanecer no hospital, pois, ao nascer, havia adquirido no berçário um vírus no intestino. A previsão era de que em duas semanas ela fosse para a casa. Porém, com uma semana, foi transferida para um hospital infantil. Os dias iam se passando, e a condição dela, agravando-se. Os médicos não sabiam mais o que fazer porque, além de desidratada, não ingeria nenhum alimento, e seu organismo rejeitava a hidratação com soro, até que um médico me disse:
– Não existe nenhuma esperança para ela, já fizemos de tudo. Não resistirá por muito tempo porque não aceita nenhum tipo de hidratação.
Chá da vovó :) (Foto: créditohttp://www.ale-retratos.blogspot.com/) |
Mesmo com toda essa situação, tendo um marido desempregado que passava o tempo nos botecos bebendo, eu, sem nenhum dinheiro nem trabalho, contando apenas com o apoio de minha família, principalmente para moradia e alimentação, no fundo de meu coração de mãe, sabia que minha filha sobreviveria porque eu não havia perdido a fé em Deus. Depois de dois meses e vinte e nove dias internada, pesando apenas dois quilos e quatrocentos gramas, decidi, por conta própria, tirá-la do hospital. Peguei um ônibus superlotado e fui para o Conde. Vovó fazia chás, e tentávamos, com todo sacrifício, que Adriana os ingerisse. O certo é que até hoje não tenho muitas explicações para a recuperação dela. A única justificativa que tenho é a fé em Deus, minha e de toda a família.
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