Finalmente, havia chegado o tão esperado dia de meu retorno ao Brasil, e eu poderia ver de perto a situação de Joselita. É claro que, durante esse tempo, preparava-me emocionalmente com a ajuda de um especialista.
Como meu filho trabalhava na Varig, tínhamos um bom desconto e, por isso, sempre viajávamos na classe executiva. Em um voo com duração de mais de onze horas, fazia diferença estar na classe executiva. O serviço era nota dez, com a comida deliciosa e variada, e havia, principalmente, o conforto da poltrona, muito mais espaçosa, que se transformava em cama. Ainda existia a vantagem de poder levar mais peso de bagagem.
Como sempre fazia, saía de Helsinki para Londres, permanecendo nessa cidade por dois ou três dias antes de embarcar para São Paulo. Dessa vez, hospedar-me em Londres tinha outro significado. Era como se eu estivesse me dando um presente e me preparando melhor para encarar a dura realidade de encontrar Joselita nas condições em que eu preferia que ela não estivesse.
Fui aconselhada por meu analista a não dizer o dia de minha chegada a Joselita evitando que ela ficasse ansiosa, pois já havia me falado que, sempre que eu atravessava o Oceano Atlântico, ela não conseguia dormir direito. Assim fazendo, telefonei de São Paulo para minha sobrinha e pedi que não fossem ao aeroporto porque achava mais fácil tomar um táxi e seguir viagem direto para o Conde. Qual não foi minha surpresa quando desembarquei em Salvador e lá estavam minhas duas irmãs, algumas sobrinhas e Madalena e Gracinha, duas grandes amigas. Fiquei muito feliz ao abraçá-las, mas, pela primeira vez, com tanto tempo morando fora do Brasil, desembarcando todos os anos nesse aeroporto, Litinha não estava à minha espera. Havia começado meu desafio.
Seguimos viagem para o Sítio do Conde, e minha irmã já estava sabendo de minha chegada, que tinha sido noticiada quando liguei de São Paulo. Abri o portão da frente, e lá estava ela sentada na cadeira de rodas, aparentemente calma. Aproximei-me, dei-lhe um forte abraço e um beijo no rosto. Mesmo tentando manter a calma, senti que ela estava fortemente emocionada. Entrei em casa, fui até a cozinha porque precisava de força, muita força para encarar aquela situação normalmente. Mesmo psicologicamente preparada, nessas horas, a teoria fica para trás e não é possível encontrar palavras para dizer qualquer coisa. Voltei para a área do jardim onde ela continuava sentada e sentei-me ao seu lado. Eu queria a todo custo entrar em algum tipo de conversa que nos descontraísse mais. Foi aí que ela me contou que, quando ficou sabendo de minha chegada, pediu a mangueira a alguém e começou a regar as plantas.
De repente, sem entender o que estava acontecendo, ouvimos um barulho ensurdecedor. Como em minha rua não existia redutor de velocidade, um homem que dirigia uma motocicleta veio em alta velocidade, perdeu o controle de sua moto, atravessou o portão de minha casa, assustando a mim e à minha irmã, além de também ter me causado um grande prejuízo material. Ninguém sabia quem era ele, pois estava de capacete e, como fugiu muito rápido, não foi possível sequer anotar a placa da moto. Para mim, esses indivíduos são verdadeiros criminosos que nunca respeitaram as leis de trânsito, muito menos a vida. Fiquei muito preocupada com minha irmã, mas ela me falou que, apesar do susto, estava muito feliz com minha chegada, por isso nem ficou muito abalada.
Percebi que Joselita tinha uma ferida perto de seu calcanhar. Perguntei-lhe como tinha se ferido e ela me disse que, alguns dias antes, sua cadeira de rodas havia se quebrado fazendo-a cair e bater seu pé no ferro da cadeira. Fiquei sem entender por que isso tinha acontecido uma vez que a cadeira era nova, comprada havia três meses, e suportava o peso máximo de noventa quilos. Minha irmã pesava apenas sessenta quilos. Falou-me também que todos os esforços foram inúteis, perante a loja, para conseguir uma cadeira nova, apesar de ter uma garantia de dois anos. Não perdi tempo. Fiz, imediatamente, contato com um advogado e entrei na justiça para reclamar uma barbaridade dessas. Que segurança um deficiente tem nesse país? Ela recebeu uma cadeira nova. Fiquei surpresa. O procedimento foi muito rápido graças à habilidade de um ótimo juiz.
A ferida em seu pé continuava a incomodar e por isso tinha que fazer curativos todos os dias. Ainda bem que no Conde a assistência de saúde havia melhorado consideravelmente. Encontrávamos enfermeiras bem preparadas e que tinham muita boa vontade em atender Joselita todos os dias. Mas aquela ferida não cicatrizava, pelo contrário, aumentava a cada dia, até que a médica pediu que a levássemos imediatamente para Salvador, a mais de duzentos quilômetros de distância, pois somente lá havia recursos para tratar melhor dessa ferida, já necrosada, que aumentava com uma rapidez tremenda.
Jouko, como sempre prevenido, alugou um carro novo quando havíamos chegado à Bahia. Ele achou melhor ficarmos com esse carro durante todo o tempo, já pensando em alguma situação de emergência. Saímos a toda velocidade para Salvador e, na clínica, o médico angiologista que a atendeu era muito habilidoso e competente, removendo imediatamente a necrose, e passou os remédios necessários para a sua recuperação.
Na semana do Natal, fui a Salvador com Jouko. Compramos muitos presentes para ajudar a médica que cuidava de Joselita no Conde, doutora Alsônia, na campanha do Natal das crianças carentes. Compramos também quinhentos pães que foram entregues junto com os presentes para ajudar na merenda. Para Jouko foi uma experiência nova.
Nosso Natal e Ano Novo foram tranquilos. Apesar de não estarem presentes meus filhos e neto, estava com outras pessoas que amava também. Resolvi fazer uma festa com música ao vivo para as enfermeiras e médicos que cuidavam com tanta dedicação de minha irmã.
No início de fevereiro, Jouko resolveu retornar à Finlândia. Meu bilhete de volta estava marcado junto com o dele, mas Joselita não estava bem e decidi ficar mais um pouco com ela.
Eu, no Brasil, caminhava em torno de doze quilômetros por dia, pela praia, e isso me dava um grande prazer, pois liberava endorfina, o hormônio do bem-estar. E caminhar pela praia com a maré-baixa era uma beleza. Todas as vezes que caminhava, percebia que havia muitos cães de raça andando na praia sem estrangulador, coleira ou focinheira. Quando os via, desviava e tentava manter-me à distância, pois os achava traiçoeiros. Sem falar da quantidade de bactérias que expeliam através das fezes em uma praia frequentada principalmente por crianças. Em uma dessas vezes, resolvi parar para fazer alongamento. Estava de cabeça baixa e, em certo momento, percebi que vinha um desses cães sem nenhuma proteção em minha direção. Continuei a me exercitar porque, mesmo que quisesse, não daria mais tempo para nenhum desvio já que o cão aproximava-se rapidamente de mim. Não pensei duas vezes e deitei-me no chão, de barriga para baixo, tentando proteger meu pescoço, pois sabia que alguns cães sempre atacam as pessoas na garganta. Senti que, com uma velocidade tremenda, o cão pulou por cima de mim. Seu dono agarrou-o pela barriga e pediu que eu seguisse. Confesso que o susto foi grande. Acelerei o passo de volta para casa, mas decidi ir até a delegacia, não necessariamente fazer uma queixa, mas pedir uma ajuda ou até mesmo um parecer do policial. Não achei justo aquilo que havia acontecido comigo. Além de pressão alta, tinha também problemas com o açúcar, e um susto desses não era bom para uma pessoa de minha idade. Quando cheguei à delegacia, não acreditei no que ouvi do policial, que me disse não haver nenhum recurso, nenhum meio de coibir aquele abuso, e que cachorros de raça andando soltos, sem focinheira ou coleira, era um fato corriqueiro nas praias. Disse-me também que eu não era a primeira pessoa a reclamar desse ocorrido. Aconselhou-me a procurar a Promotoria e oficializar uma queixa. Resolvi não fazer nada e achei melhor trocar de rota nas minhas caminhadas. Não demorou uma semana, e um pitbull tentou atacar uma criança, mas, como não conseguiu, mordeu a boca de um jumento que estava ao lado da criança. A violência da mordida foi tão grande que o jumento morreu. Os donos dessas feras, tão ignorantes, nada sabem sobre esses cães e os criam sem nenhum preparo. O que mais me intrigava em toda essa história era ver a passividade da população diante de situações tão escabrosas.
Enquanto permaneci no Brasil, Joselita tomava insulina três vezes ao dia e tinha que medir o açúcar pelo menos duas vezes por dia. Tomava, diariamente, em torno de vinte e dois comprimidos. Se ela dormisse bem uma noite, na outra, já sabia que dormiria mal e passaria a noite sentada na cama chorando devido a dores intensas da neuropatia. Para essa doença, tomava um remédio importado da Holanda que, segundo sua médica, era a última novidade para aliviar suas dores. Com o tempo, esse remédio passou a não ser mais tão eficaz como antes, e, além do mais, ela tinha outras complicações. Era muito triste ver minha irmã sofrer. Mas, por outro lado, ficava admirada com sua coragem, sua luta pela vida e, principalmente, sua tentativa de manter-se independente, fazendo sua higiene pessoal e até mesmo ajudando a preparar a comida. Ela pedia muito para ajudar nos afazeres domésticos, pois, além de sentir-se útil, distraía-se bastante, mesmo sentada em uma cadeira de rodas.
Já havia passado quase cinco meses que eu estava junto a Joselita e quase três que Jouko havia retornado à Finlândia. Meu coração doía bastante de saudades dele, de meus filhos e de minha casa.
Mais uma vez era chegada a Páscoa. Fui ao supermercado comprar, além das comidas da Sexta-Feira Santa, alguns vinhos tintos do Chile. Os vinhos Santa Helena e Santa Cecília, feitos com uva cabernet sauvignon, de safra 2002 a 2003, eram vinhos que apreciávamos muito na Finlândia. Não pude conter a surpresa quando vi o preço dos mesmos. Que disparate! Na Finlândia, o salário mínimo era dez vezes maior do que no Brasil, a taxa de importação para o álcool era altíssima, e a distância entre a Finlândia e o Chile, muito maior do que a do Brasil e o Chile. Então, como era que esses vinhos vindos de um país vizinho ao Brasil podiam custar quase 50% a mais? Fiquei estupefata e até um pouco revoltada. Como eu estava com muita vontade de tomá-los, comprei-os assim mesmo. Pude constatar que outros produtos industrializados (brasileiros ou não) custavam uma verdadeira fortuna no Brasil, o que não condizia com o poder de compra do trabalhador brasileiro.
Em uma tarde de domingo, quase escurecendo, eu estava sozinha com minha irmã. Ela, na cadeira de rodas, a porta da frente estava aberta, mas os portões, fechados. Um carro parou na frente de casa, e um indivíduo com um cheiro forte de álcool chamou-me. Era uma pessoa conhecida, um primo meu que frequentara muito minha casa e que, àquela altura, apresentava problemas psiquiátricos. Já havia sido internado em manicômio algumas vezes, derrubou a casa da madrinha com uma escavadeira e tinha até sido preso por tentar espancar a mãe e por ferir o pai. Essas eram algumas razões pelas quais eu tentava mantê-lo afastado de casa, mas ele continuava a procurar-nos. Aproximei-me e perguntei-lhe o que queria. Quando senti o cheiro forte de álcool, pedi-lhe que se retirasse, pois não queria que entrasse em minha casa. Começamos a discutir e, antes que eu pudesse ter qualquer reação, esse homem já havia pulado o portão e me agredido fisicamente. Lembro-me de que me jogou com toda a força no chão e começou a me espancar. Minha irmã, desesperada, gritava para que não fizesse aquilo comigo enquanto eu tentava me defender, mas o criminoso tinha mais do que um metro e oitenta de altura e estava completamente insano. Nessa hora, além da dor física que sentia, estava aflita, com medo de que alguma coisa pudesse acontecer com minha irmã. Procurei me defender e me levantar do chão. Quase sem forças, tentando coordenar as ideias, ficar de pé e procurar socorro, percebi que ele havia desaparecido. Acredito que, como ele sabia que eu tinha valores em casa, havia tentado me assaltar. Ou talvez tivesse percebido que não era mais bem-vindo e revoltou-se. Posteriormente fiquei sabendo que usava drogas e estava no Conde porque fugia da polícia de Salvador. Nessa hora, veio em minha mente que um ano e meio havia se passado da cirurgia de Joselita, de todo o empenho em salvar a vida dela, tirando-lhe daquela UTI e do hospital, e de todo o seu processo de recuperação. E, de repente, do nada, esse marginal poderia ter colocado tudo a perder pela barbaridade de seus atos. Para mim, foi um choque tremendo. O impressionante foi que, em minha casa, principalmente no domingo, era um entra e sai de pessoas que às vezes até incomodava, mas, nessa hora, nem uma pessoa, ninguém passou pela frente de casa para dar-nos socorro.
Chamei a polícia, a qual veio imediatamente, levando-me para o hospital, pois, além de machucada, estava em choque, com minha pressão arterial muito alta. Fiquei sete horas no hospital porque, apesar dos medicamentos que o médico me dava, minha pressão não baixava até que pedi ao médico para ir para casa. Achei que se tomasse meus próprios remédios, minha pressão voltaria ao normal. Foi isso que aconteceu.
Esse caso foi entregue à Justiça. Espero que esse marginal seja punido e aprenda a respeitar as pessoas de bem, principalmente uma pessoa deficiente como minha irmã.
Resolvi voltar para a Finlândia por causa dessa agressão e também por não aguentar mais o sentimento de saudade de meu marido e de meus filhos. Contratei um segurança particular para acompanhar-me em minhas caminhadas e para proteger minha casa até o dia de meu retorno à Finlândia. Levou-me, junto com minha família e meus amigos, até o portão de embarque do aeroporto.
Decolei de São Paulo para Londres no horário previsto. Mesmo com o conforto da classe executiva, foi muito difícil pegar no sono. Desembarquei em Londres em uma tarde ensolarada de primavera. Tinha a intenção de permanecer lá por três dias. No caminho do aeroporto para a cidade, as lágrimas vieram-me aos olhos ao ter como paisagem o desabrochar das flores: as acácias, as tulipas e outras variedades. Em Londres, fui novamente ao teatro assistir à lindíssima peça Aída, do compositor italiano Giuseppe Verdi. Essa peça foi encenada para as comemorações da abertura do Canal de Suez em 16 de novembro de l869.
Depois de três dias, cheguei à Finlândia.
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