Sempre que voltava ao Brasil, pensava muito em meu irmão Jorge, que não via já fazia quase dezoito anos, cujo paradeiro ninguém da família sabia. A última vez em que nos vimos foi na época em que eu morava em São José dos Campos. Todos os outros momentos em que estava no Brasil, eu acabava me envolvendo com tantas outras coisas da família que nunca dava tempo de procurar por ele. Mas, dessa vez, estava decidida a vê-lo novamente. Como eu não tinha o endereço dele e nem mesmo seu número de telefone e só sabia o nome da cidade em que ele morava, tinha consciência de que localizá-lo seria uma tarefa difícil. Mesmo assim, estava determinada a encontrá-lo, pois não suportava mais as saudades.
Eu iniciei minha trajetória telefonando para a Anatel, empresa de telefonia, pedindo alguns números de telefone de Joia, cidade localizada a mais de quinhentos quilômetros de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, onde ele morava. Sabia que não iria ser fácil encontrar uma pessoa em uma cidade com centenas de milhares de habitantes, ainda por cima, por telefone. Como a cidade era pequena e seus moradores, em sua maioria, eram descendentes de alemães e italianos, disse à telefonista as características de meu irmão, um homem moreno e com sotaque do Nordeste do País, na esperança de que isso pudesse ajudar a localizá-lo. Com base em minhas informações, a funcionária da Anatel, que era muito simpática, forneceu-me trinta números de telefones residenciais e comerciais. No terceiro telefonema, uma voz feminina atendeu. Era de uma casa residencial. Quando comecei a falar, já chorando e apelando por ajuda, senti que a mulher com a qual eu conversava estava interessada em me ajudar. Ela me pediu que esperasse por duas horas, tempo de que necessitava para que seu marido chegasse e fossem juntos, de carro, à procura de um rapaz do Nordeste, segundo ela, com as mesmas características físicas de meu irmão. Não telefonei para mais ninguém porque, por mais incrível que pudesse parecer, sentira a boa vontade dessa senhora para me auxiliar e firmeza na informação dada por ela de que poderia saber de quem se tratava: um rapaz que trabalhava com jogo do bicho. Não foi preciso esperar duas horas. Antes disso, para minha alegria, essa senhora tinha informações sobre a localização desse rapaz, que poderia ser meu irmão. Ela foi até a casa lotérica e conseguiu seu endereço e seu nome:
– Dona Maria José, eu não posso afirmar cem por cento que o rapaz é seu irmão porque o que conheço aparenta muito mais do que cinquenta e dois anos e tem cabelos grisalhos.
Meu coração dizia-me que era ele. Agradeci-lhe muitíssimo e anotei o telefone da casa próxima de onde ele morava. Telefonei em seguida para o número fornecido pela senhora:
– Senhora, tem idéia de que horas são? – perguntou-me um homem do outro lado da linha.
– Sim, senhor. São 21 horas. – respondi-lhe.
– Pois fique sabendo que não é hora de ligar para a casa dos outros, principalmente sem conhecer os donos da casa. Eu trabalho e tenho que acordar às 5 horas. – disse-me o dono da casa.
– Senhor, peço-lhe mil perdões por estar incomodando-o, mas estou telefonando de Salvador à procura de meu irmão que não vejo há quase dezoito anos e ouvi falar que talvez seja o homem que mora nos fundos de sua casa. Se fosse possível, gostaria de falar com o mesmo. Se não, posso lhe dar meu número de telefone para que o senhor peça a ele que me ligue a cobrar.
O dono da casa anotou o número e, sem nenhuma palavra, desligou o telefone e nem disse até logo. Acredito que, em menos de quinze minutos, meu telefone tocou e, para minha surpresa, era o mesmo senhor com quem eu havia falado minutos antes:
– Depois que a senhora desligou, comecei a pensar no seu apelo e achei que não me custava nada me levantar, trocar de roupa e chamar o rapaz que a senhora mencionou. Ele está aqui ao meu lado e vai falar.
Confesso que a emoção foi muito forte quando, do outro lado da linha, ouvi a voz de meu querido irmão. Choramos bastante. Sentia que estava muito triste e desiludido. Disse-lhe que se preparasse porque iria providenciar o bilhete aéreo para sua vinda a Salvador. E ele me disse:
– Minha irmã, eu não tenho nenhuma condição de viajar, muito menos de avião. Não tenho roupa adequada e estou completamente sem dente.
– Meu irmão, não se preocupe com isso. O importante é que nós nos encontramos. Essas coisas práticas serão resolvidas. Amanhã mesmo procure um dentista, faça o orçamento, peça o número da conta dele no banco, que eu enviarei a quantia imediatamente. Quanto às roupas, sapatos e o que mais necessitar, eu mandarei amanhã mesmo, o quanto for necessário. – respondi-lhe.
Tudo acertado. Mandei fazer duas faixas que diziam: Irmão querido, bem-vindo a sua terra natal. Nós te amamos! Sua família e seus amigos. As faixas seriam para o aeroporto e para a porta de minha casa no Sítio do Conde.
Depois de duas semanas, o tão esperado dia havia chegado. Munidos de filmadora, máquina fotográfica, faixa e gargantas preparadas para cantar a música preferida dele, Debaixo dos caracóis dos teus cabelos, cantada por Roberto Carlos, nós o esperávamos. Estávamos no aeroporto eu, minhas irmãs e todos os sobrinhos que pude reunir. Os momentos de grandes emoções estavam apenas começando. Depois de sua chegada e de uma noitada em um restaurante de música ao vivo, fomos para o apartamento onde as filhas de Joselita moravam em Salvador. Nessa noite, ninguém dormiu, porque só queríamos conversar e matar as saudades, que eram muitas.
No outro dia pela manhã, seguimos viagem para o Sítio do Conde. Depois que ele viu a faixa na frente de minha casa em sua homenagem, conseguimos convencê-lo a ir para a casa de nossa irmã Jacira, pois tínhamos pouco tempo para a preparação de uma festa surpresa que seria dada em sua homenagem à noite. Convidei em torno de cinquenta pessoas, entre familiares e amigos. Contratei uma banda de música e fiz um bufê de comida baiana. Mas, com certeza, não faltaram o salmão, molhos de cogumelos finlandeses, doces e a vodca da Finlândia. O vinho era chileno. Minha prima Vânia, advogada que trabalhava na Câmara dos Vereadores, decorou a área da festa com balões brancos e vermelhos com uma rapidez incrível. Foram colocados nas mesas toalhas vermelhas, arranjos de flores naturais e velas trazidas da Finlândia.
Eram 20 horas em ponto. Tudo estava pronto para mais uma emoção com as luzes da casa apagadas, a banda de música preparada, o cantor Zeca com microfone em punho e todos os convidados no mais absoluto silêncio.
Meu irmão chegou a minha casa sem entender o que estava acontecendo porque, além de todas as luzes do jardim apagadas, também o poste da frente não tinha luz. Ele comentou com Jacira:
– Minha irmã, que estranho. Por que você me trouxe para cá? Parece que não tem ninguém em casa.
Enquanto falava, Jacira abria o portão da frente. Nessa hora, a voz do cantor Zeca entoou lindamente a música Emoções, de Roberto Carlos. As luzes acenderam-se, e o que vi foi um irmão extremamente emocionado, dizendo que estava vivendo um sonho. Acredito que esses momentos na vida da gente não podem ser descritos em palavras. Foi lindo ver a alegria de meu irmão abraçando todos os entes queridos com quem ele não tinha contato havia quase dezoito anos. Foi gratificante trazê-lo de volta e fazer-lhe essa surpresa. E põe gratificante nisso.
VÍDEO - EMOÇÕES
Apesar da alegria de ter meu irmão de volta e minha irmã gêmea morando comigo, eu me sentia muito triste por vê-la, a cada dia, sendo consumida pela diabetes, ficando cada vez mais magra. Ela tinha que aplicar insulina todos os dias. Mas, por incrível que pareça, ela nunca se abateu, ou melhor, não se entregou. Estava sempre na cozinha fazendo comida gostosa para todos ou preparando alguma coisa para agradar-me. Ela era incansável.
E, finalmente, outro esperado dia havia chegado. Feliz da vida, eu estava indo para o aeroporto de Salvador buscar meu marido, que vinha de um voo direto de Frankfurt. Ele iria passar três semanas comigo durante o período do Natal e Ano Novo. Meu filho também havia chegado de Santa Catarina, onde estudava, junto com sua noiva. No Natal, também chegaram a mãe e a irmã da noiva de meu filho para passar uma semana na Bahia. Ficaram hospedados no Hotel Praia do Conde.
Durante esse período, tivemos muitos e inesperados gastos, o que nos fez ter de ir várias vezes aos caixas eletrônicos mais próximos, que ficavam em Costa do Sauípe e Salvador. Jouko ficou muito estressado com essas idas e vindas, mas eu nem sabia que isso iria incomodá-lo tanto. Mesmo assim, curtimos nossas festas de fim de ano e passeamos bastante. Logo depois das festas, Jouko viajou porque tinha um projeto em Manila, nas Filipinas. Resolvi continuar no Brasil para curtir mais minha casa e minha família.
Os dias iam passando, e sentia que minha irmã ficava mais debilitada. E ainda, sem nenhuma explicação, meu irmão Jorge, que havia parado de beber fazia dois anos, começou a beber novamente. Eu tentava conversar com ele, mas nada adiantava.
Chegou o dia de voltar à Finlândia. Mais uma vez cruzei o Atlântico e voltei para minha família. Eu estava um pouco preocupada por deixar minha irmã gêmea não muito bem de saúde. Ela, além de estar com várias feridas pelo corpo, tinha uma que lhe doía muito no pé, de cor mais escura. Nós nos falávamos quase todos os dias ao telefone, e ela se queixava imensamente de muitas dores, até que um dia, quando eu chegava da minha caminhada diária, ela me ligou chorando. Ela estava em minha casa do Sítio do Conde à espera de um carro que a levasse a Salvador, mas, passadas quatro horas, esse ainda não havia chegado. Disse-me que não suportava mais a dor no pé, o qual já havia, inclusive, mudado de cor. Devido aos diversos problemas financeiros que aconteceram comigo no Brasil, tinha parado de pagar o plano de saúde dela.
Regina, minha irmã mais nova, era comadre de um político que prometera levar Joselita para um hospital especializado em tratamento de ferimentos provocados por diabetes. Quando o bendito carro apareceu, ela já não aguentava mais a dor e, ainda na Estrada do Coco, por causa do estresse provocado pela dor, teve uma parada respiratória. Regina imediatamente pediu ajuda à ambulância da CLN, empresa que privatizou a Estrada do Coco. Confesso que fiquei impressionada com o atendimento nota dez que essa empresa deu à minha irmã. Eles a medicaram, e ela seguiu viagem para esse hospital no bairro de Nazaré. Mesmo internada, sua condição piorava dia a dia. No final de cinco dias em que lá estava, a necrose já havia tomado conta de sua perna.
Eu permanecia na Finlândia, a ponto de enlouquecer, ligando toda hora para saber notícias dela. Mandei providenciar um angiologista particular, que tentou fazer uma curetagem para salvar sua perna. Esse procedimento, segundo o médico, poderia funcionar. Foi retirada toda a musculatura de sua perna, ficando apenas os ossos e nervos. A ideia do médico era fazer um enxerto após a cicatrização, procedimento esse feito depois, em outro hospital do SUS, em Lauro de Freitas.
Minha irmã piorava a cada minuto e necessitava ser transferida para um hospital de grande porte, com uma boa Unidade de Terapia Intensiva (UTI), uma vez que ela corria o risco de morrer. Depois de muitos esforços, sem que conseguissem encontrar alguma vaga em um hospital, autorizei que a levassem para um particular e, em seguida, enviei o dinheiro para o depósito que o hospital exigia. Levaram-na direto para a UTI. Depois de três dias, tentaram encontrar uma vaga em um hospital do SUS. A situação estava ficando insustentável porque a conta de onde ela estava internada aumentava por segundo. Telefonei para um amigo político a fim de conseguir uma vaga em algum hospital público, e ele prometeu fazer uma tentativa. Enquanto isso, todos da família e alguns amigos estavam empenhados também em conseguir vagas em outros lugares.
Uma pessoa do hospital havia dito a Regina que teria uma vaga à espera de Joselita no Roberto Santos, um hospital do SUS, inclusive com uma ambulância equipada com uma mini-UTI à sua espera para fazer a transferência. Essa notícia animou-me porque, assim, Joselita teria assistência pelo menos até eu providenciar dinheiro para colocá-la em outro particular. Quando a ambulância chegou ao Roberto Santos, levando Joselita, Regina ouviu, atônita, a notícia de que lá não existia nenhuma vaga. Era um sábado, dia 12 de julho de 2003. Como Joselita não podia continuar na ambulância, colocaram-na no banheiro junto com um cadáver. Ela estava sedada e, graças a Deus, não pôde se lembrar de nada. Essa história nunca ficou clara para mim.
Em uma das vezes em que Joselita foi transferida de um hospital para outro, sentiu-se muito mal dentro da ambulância e pediu ao enfermeiro uma ajuda para soltar seus braços, que estavam presos com ataduras aos suportes da maca, porque ela queria vomitar. Mas o médico não autorizou esse procedimento. Quando chegou ao hospital, ela insistiu que queria vomitar. Enquanto sua filha saiu para chamar o médico, Joselita lembra de que pediu a Deus que, se tivesse que continuar vivendo, ajudasse-a a soltar seus braços para que pudesse vomitar. Ela já sentia sua respiração e seus batimentos cardíacos muito fracos. Então, de repente, conseguiu soltar-se, pôr o dedo na garganta e vomitar. Nesse momento, entraram no quarto sua filha, o marido e o médico, que, estupefatos, viram-na vomitar sangue. Joselita estava tendo uma hemorragia interna.
Eu me sentia péssima por ter parado de pagar seu plano de saúde. Jouko tentava me acalmar, dizendo que, apesar de amá-la muito, eu não era a única pessoa da família responsável por ela. E nunca poderia imaginar que isso fosse acontecer com minha irmã gêmea. Eu estava vivendo um pesadelo porque as notícias que ouvia por telefone eram desesperadoras. Minha irmã não tinha muita chance de sobreviver mesmo estando em um bom hospital. Mal desligava o telefone, eu já queria ligar de volta. A cada vez, uma pessoa diferente atendia ao telefone no Brasil dando-me notícias e opiniões diferentes sobre minha irmã, o que me deixava mais nervosa, enlouquecida de preocupação e com muito medo de perdê-la. Meu marido e outras pessoas de sua família, graças a Deus, estavam ao meu lado dando-me muito apoio.
Certo dia eu liguei e ouvi, em choque, de Regina, que o médico que havia feito a curetagem na perna de Joselita disse que os nervos de sua perna já estavam apodrecidos e era preciso amputá-la com urgência. Segundo esse médico, o procedimento teria que ser feito no mesmo dia, pois, caso contrário, Joselita não resistiria. Só restava levá-la para um hospital particular para executar a amputação em melhores condições. Parecia que tudo aquilo era um pesadelo e, como sempre, parecia também que eu era a única pessoa da família que podia ajudar, ou seja; enviar logo na segunda-feira de manhã o valor para pagar a cirurgia, o hospital, os médicos e outras coisas mais. Meu marido não hesitou em concordar com a remessa do dinheiro que deveríamos enviar. O problema era a sobrevivência dela. Tínhamos muito medo de que não resistisse a essa operação já que se tratava de uma pessoa extremamente debilitada. Foi dito ao médico que, vinte e nove anos antes, Joselita, ao fazer uma cirurgia no baço, havia permanecido por quase três meses no hospital depois do parecer dos médicos de que não resistiria e de até ter recebido a extrema-unção de um padre. Mas, milagrosamente, resistiu, voltando para casa para cuidar de suas três filhas, que eram pequenas. E, ainda, quando teve seu último filho, havia desenvolvido uma doença que a fez emagrecer bastante e perder todo o cabelo. Ela demorou muito para recuperar-se. Passado algum tempo, o médico disse-lhe que a sua hipófise estava muito reduzida de tamanho e que precisaria tomar corticoide pelo resto da vida. Depois que o médico conheceu todo seu histórico e, em função da gravidade de seu problema, não deu muitas esperanças para a família. Tinha que acontecer um milagre, principalmente porque, segundo os médicos, a amputação de um membro era extremamente dolorosa. Como minha irmã poderia resistir?
Nessa noite, eu estava extremamente desesperada, ligando para o Brasil a todo o tempo. E muitas vezes o telefone só dava ocupado, o que aumentava ainda mais meu desespero. Como era horrível estar longe nessa hora. Finalmente, no dia seguinte, às 4 horas, horário da Finlândia, eu ouvi ao telefone que a cirurgia já havia terminado e Litinha tinha sido levada para a UTI. Só restava rezar, rezar bastante, não importando em que religião. O que importava era a fé das pessoas que a amavam. Mesmo em desespero, eu não perdia a fé, que era mais forte do que tudo e nunca me abandonava. É lógico que eu estava sendo medicada com tranquilizantes. Finalmente, consegui dormir das 7h às 11h e acordei com meu marido entregando-me um buquê de rosas. Era o dia de meu aniversário, ou melhor, meu e de Joselita. Alguns minutos depois de ter tomado café da manhã, por insistência de Jouko, liguei novamente para o Brasil e ouvi que ela continuava sem acordar da anestesia. Não sabia o que fazer. Eu havia chegado do Brasil havia pouco mais de um mês. Como enfrentar uma viagem longa de volta? E, como eu acreditava que ela iria sobreviver, achei que talvez fosse melhor ficar na Finlândia porque o dinheiro que iria gastar com passagens serviria para ajudá-la com todas as despesas, inclusive as do hospital.
Nesse dia, à tarde, a família de Jouko veio para nossa casa e trouxe bolo de aniversário, presentes e principalmente apoio. Mas eu estava sufocada e, às vezes, nem conseguia respirar direito só de pensar que minha irmã, minha metade, estava correndo risco de morte.
No dia seguinte, eu tentava encarar toda aquela situação. Ela continuava na UTI, e seu estado era crítico. Fui, então, até a agência de turismo da esposa do primo de Jouko e fiz uma reserva para regressar ao Brasil no dia seguinte. Ainda não tinha certeza se iria enfrentar essa longa viagem porque, além de estar muito confusa, sem saber se essa decisão seria a mais certa, eu também não tinha força física uma vez que havia dormido muito pouco nos últimos três dias. Minha tontura voltara provocada pelo estresse que estava vivendo. Eu e meu marido conversamos bastante e chegamos à conclusão de que seria melhor cancelar a viagem e esperar um pouco.
Os dias foram passando, e aquele pesadelo continuava. Depois de uma semana da cirurgia, Joselita permanecia na UTI, em coma induzido, pois, segundo os médicos, não suportaria as dores.
Depois desse pesadelo, minha irmã sempre tem contado uma história que eu gostaria que fosse passada para muitas pessoas. É uma história emocionante. Ela disse que, um dia, na UTI, acordou com dores insuportáveis, tentava gritar para pedir ajuda, mas não conseguia se mexer, continuava imóvel. Ela estava entubada e queria pedir socorro, mas ninguém a ouvia. Pediu, então, desesperadamente, ajuda à nossa mãe, falecida há mais de quinze anos. Em um determinado momento, em seu delírio, começou a caminhar e viu nossa mãe. Pediu-lhe ajuda, ouvindo dela:
– Filha, tenha paciência que você irá melhorar porque a solução está ao seu lado.
Minha irmã olhou para o seu lado direito e viu um homem com o semblante bonito e sereno, que lhe estendia as mãos e pedia-lhe que deitasse em seu colo. Depois, ele pôs as mãos em sua cabeça e disse-lhe:
– Não se preocupe. Suas dores serão aliviadas.
Ela conta que sentiu uma paz muito grande e parou de sentir dor. Depois de alguns dias, passou a acordar e dormir com regularidade. Estava sendo alimentada via soro e também tinha uma sonda para receber alimentos. Muitas vezes, quando estava acordada, falava alguma coisa que ninguém entendia. Conversei sobre isso com pessoas especializadas, que acharam que minha irmã esteve no limite entre a vida e morte. O que sei é que nem a ciência explica isso.
Eu não aguentava mais de saudades de minha irmã, precisava ouvir sua voz porque o hábito de conversarmos praticamente todos os dias durante os anos em que estávamos separadas havia sido interrompido bruscamente por esse seu problema de saúde. E, nesse período, quando eu telefonava e as pessoas a colocavam para falar comigo, para meu desespero, não conseguia entender uma só palavra do que ela dizia. Mesmo encarando toda essa situação, jamais perdi a fé. Tinha certeza de que iria conversar com ela novamente. Depois de vinte dias de sua cirurgia, quase explodi de felicidade quando liguei para ela e a ouvi dizer:
– Iaiá, minha irmãzinha, eu quero me deitar em seu colo.
Eu ouvia sua voz soando perfeita em meu ouvido como uma música, uma música abençoada. Nesse instante, disse para mim mesma: “Louvado seja Deus! Tudo posso naquele que me fortalece.” A alegria estava de volta ao meu coração. Mesmo ela estando no hospital, eu sabia que iria retornar para casa dentro em breve. A partir daquele dia, não via a hora de telefonar-lhe e ouvir sua voz novamente.
Em um desses dias em que liguei, quando alguém atendeu ao telefone, faziam o curativo em sua perna. Meu coração doeu ao ouvir seus gritos desesperados de dor.
Os dias foram passando, e ela foi se recuperando devagarzinho. Muitas vezes, quando eu telefonava, ela chorava muito, dizendo-me que não aguentava mais tantas dores, não queria mais lutar, não tinha mais forças. Mas eu sempre lhe dava muita força, usando as palavras adequadas para fortalecê-la. Sabia que sofria muito, porém nem de longe eu tinha ideia da dor que sentia. Sei também que não tinha nenhuma explicação para o que havia acontecido com ela. Logo ela que, além de todos os problemas de saúde, sofrera praticamente a vida toda, não tivera a chance de estudar, fora jogada com treze anos nos braços de um primo rude, ignorante, muito mais velho do que ela, fantasiado de rico, que praticamente a estuprou! Com esse homem, minha irmã teve cinco filhos, perdeu dois ainda pequenos por doenças que, na época, não tinham cura e, ainda por cima, foi lesada no divórcio.
Depois de algum tempo no hospital, Joselita voltou para casa, ainda lutando para sobreviver e livrar-se das imensas dores que sentia. Passou a usar cadeira de rodas porque sua outra perna, sem nenhuma explicação, estava sem os movimentos. Necessitava tomar uma quantidade incrível de remédios. Essa teria sido a hora perfeita para que seu ex-marido e ex-cunhado corrigissem seus erros e devolvessem os direitos que lhe tiraram quando da época do fraudulento divórcio.
O primeiro hospital onde minha irmã ficou em Salvador, especializado em diabetes, é uma vergonha para o Brasil. Joselita chegou a este hospital com uma necrose no pé, ficou internada por uma semana em tratamento e saiu com seu problema na perna agravado, o que levou à sua amputação. De acordo com o médico que a tratou em um dos hospitais particulares, ela não teve a medicação adequada no hospital anterior, o que permitiu o alastramento da necrose e posterior perda da perna. E, além da amputação, por infelicidade, adquiriu uma doença chamada neuropatia, que lhe tirou o movimento da outra perna. Passados sete longos meses de sua cirurgia, minha irmã continuava sem andar, dependendo de uma cadeira de rodas e de pessoas para ajudarem-na a locomover-se. Não posso deixar de ficar revoltada com o que aconteceu a ela.
Eu continuava na Finlândia, fortalecendo-me emocionalmente e fisicamente porque tinham piorado muito os problemas de minha coluna. Também, com tanto estresse, tanto medo, tanta angústia que sentia ao pensar que poderia perder uma das pessoas que mais amava nesse mundo, eu só iria piorar mesmo. A tontura havia voltado, e eu estava tomando medicamentos, mas mantinha as esperanças de que iria atravessar mais uma vez o Oceano Atlântico e abraçar minha querida irmã.
Eu falava com Joselita ao telefone todos os dias e notava que ela estava um pouco mais animada e, logicamente, ansiosa para andar. Sentia muita pena quando a ouvia dizer que gostaria de ficar pelo menos um dia sem sentir dor mesmo que depois a dor voltasse.
Minha irmã passou a ter um plano de saúde, bons médicos que a acompanhavam, uma dieta controlada e, além de uma enfermeira, seu marido, José Rodrigues, suas filhas e netas, outras pessoas da família ajudavam a cuidar dela. Depois de tudo que passou, depois da cirurgia de amputação que a deixou por quase três meses no hospital, da infecção generalizada, do mau funcionamento dos rins, da água nos pulmões, da hemorragia interna, de várias paradas cardíacas e respiratórias, das distensões abdominais e de outras coisas mais, eu não tinha mais nenhuma dúvida de que, um dia, receberia muitas bênçãos, muitas graças e muitas coisas boas. Realmente, acredito que deva haver uma resposta para que uma pessoa tão boa passe por tanto sofrimento na vida.
Impossibilitada de andar, Joselita continuava na cadeira de rodas lutando desesperadamente para controlar seu açúcar. Sua dieta era rigorosíssima, por isso sempre me dizia ao telefone que sentia fome. Eu lhe dizia que era necessário mantê-la para que não viesse a ter mais problemas.
Minha irmã agradecia-me muito pela ajuda material e espiritual que sempre lhe dava porque, mesmo com uma família tão grande, não recebia ajuda de mais ninguém. Suas filhas faziam o que podiam. Eu agradecia muito a Deus por poder ajudá-la e por ter o marido que eu tinha, pois sabia que sempre poderia contar com sua ajuda e compreensão.
Depois que minha irmã já estava em casa, com a vida mais organizada, no verão de 2004, fiz algumas viagens. Em uma delas, fui passar uma semana em Budapeste, na Hungria. Aproveitei o máximo que pude visitando palácios, museus e curtindo a arquitetura belíssima dessa cidade. Lá eu vi o castelo de veraneio que pertenceu à Imperatriz da Áustria, Elizabeth, que tinha o apelido de Sissi. Foi assassinada cruelmente por um fanático em uma de suas viagens oficiais à Holanda. Durante essa viagem, o que me deixou mais fascinada foi o cruzeiro que fizemos pelo rio Danúbio durante uma noite. No navio, além do jantar com um bufê maravilhoso com comidas húngaras, assistimos a várias coisas, dentre elas, opereta, dança do ventre, river dance, uma dança folclórica irlandesa, e show folclórico. Do lado de fora do navio, além da luz da lua refletida em todo seu esplendor nas águas límpidas e mansas do Danúbio, podiam-se ver, sobre este rio, várias pontes iluminadas que, de tanta beleza, tiravam o fôlego do visitante. No dia seguinte, fomos a um restaurante jantar e assistir a um show de música cigana. Havia mais do que trinta violões tocando ao mesmo tempo, além de outros instrumentos. Confesso que as lágrimas vieram aos olhos de tanta emoção. É sempre difícil descrever com palavras a beleza dessas cidades históricas.
Budapeste |
Em Budapeste - Hungria |
Budapeste a noite (Foto by Valdir Roberto via Flickr) |
Budapeste - Hungria (Foto by Tereza via Flickr) |
Templo dos Pescadores - Budapeste (Foto by João Pedro Menezes via Flickr) |
Já havia um ano e três meses que retornara do Brasil, e eu nunca havia ficado tanto tempo sem regressar a meu país. E o que mais me impressionava era que, desde que minha irmã havia passado por todo aquele sofrimento, eu viajava para qualquer lugar com meu marido, mas, quando pensava em tomar um avião para o Brasil, sentia medo. Minha analista achava que poderiam existir muitas explicações para esse meu medo. Uma delas podia estar relacionada ao fato de que talvez eu ainda não aceitasse a ideia de ver minha irmã com a perna amputada. Ou ainda, talvez pudesse ser uma rejeição ao próprio Conde. Entretanto, eu sabia que precisava retornar a meu país, pois não aguentava mais as saudades de minha irmã e sabia também que era preciso aceitar sua condição física. E Jouko iria me acompanhar para dar-me força.
Depois de um ano da cirurgia de Joselita, para completar sua tristeza, seu marido havia resolvido abandoná-la sem nenhuma explicação e voltar para a ex-mulher. Fiquei surpresa, pois ele havia cuidado dela todo o tempo com tanto carinho e dedicação. Para minha irmã, foi um choque tremendo, principalmente porque ele levou a criança que eles haviam adotado algum tempo antes alegando que Joselita não podia mais cuidar dela.
Eu admiro muito minha irmã por sua força. Caso contrário, não teria resistido a tudo isso. Sempre lhe disse que um dia ela voltaria a ser muito feliz. E acreditava também que, se ela continuasse com essa força, teria toda a chance do mundo de voltar a andar. Jouko e eu esperávamos poder ter a alegria de, mais uma vez, estar com minha irmã na Finlândia para que ela pudesse colocar uma boa prótese já que lá se encontrava a melhor fábrica de próteses e um dos maiores centros de reabilitação do mundo. A cada dia, eu sabia que esse sonho poderia ser transformado em realidade.
Guerreira!
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